Para aqueles que seguem atentamente o futebol, especialmente nos estádios portugueses, as chamadas ‘varridelas’ protagonizadas pela polícia não constituem um facto novo.
Por: Pedro Almeida Do: red pass
Desde sensivelmente a segunda metade da década de 1990 que se tem vindo a assistir a uma espécie de militarização das forças policiais: agentes equipados ‘até aos dentes’, ‘acções musculadas’, faltando apenas carros blindados para que se recrie um verdadeiro cenário de guerra. No entanto, e como já tem sido defendido, este tipo de aparato policial tem, por norma, efeitos contraproducentes. Isto é, um policiamento excessivo (quer em número, quer em meios) incita ao conflito, em vez de o impedir.
Não menos importante do que os meios utilizados são as próprias condutas da polícia. E é aqui que reside o problema.
De uma forma geral, tem-se assistido, em Portugal, a um processo de ‘demonização’ dos grupos organizados de adeptos. Com efeito, desde os media até ao chamado ‘adepto comum’, passando por muitos outros actores envolvidos no futebol, a diabolização das claques e dos membros que as compõem tem sido uma constante. ‘Vândalos’, ‘arruaceiros’, ‘escumalha’ são alguns dos adjectivos que se tornaram comuns para caracterizar estes grupos. É um discurso recorrente e ao qual todos nós já nos habituámos.
A carga policial efectuada pela PSP sobre os adeptos do Benfica tem que ser entendida e compreendida neste contexto. Para a polícia e para grande parte do público, tratou-se, apenas, de ‘acalmar os ânimos’.
O ponto que pretendo salientar é o seguinte: este tipo recorrente de actuação só é possível porque, de facto, conta com o apoio da generalidade dos actores envolvidos no futebol e fora dele. Não é pois, de estranhar, que se tenham escutado, em vários sectores do estádio onde se encontravam adeptos do Benfica, comentários como ‘vêm lá dos guetos, das barracas e não se sabem comportar’.
Assim, de uma ‘assentada’, legitima-se o uso da força indiscriminada por parte da polícia, enquanto se estigmatiza, inferioriza e insulta os sectores mais excluídos da sociedade. Além de se partir de um pressuposto falso (de que os grupos de adeptos organizados provêm exclusivamente dos bairros pobres) este discurso contém, explicitamente, um ‘ódio de classe’, no sentido em que quem o profere vê-se, a si mesmo, como pertencente a outro nível social superior e, por conseguinte, distante ‘dessa gente’.
Não é necessário uma pesquisa muito exaustiva nas redes sociais (ou simplesmente escutar as ‘conversas de café’) para se perceber que, para além do classismo, este episódio traz à superfície outro fenómeno social que, por norma, é pouco discutido em Portugal: o racismo.
A composição multirracial de um dos grupos organizados de adeptos do Benfica constitui um aspecto que merece ser destacado, não só pelo facto de fugir à regra, mas principalmente porque isso o torna num alvo preferencial de insultos e comentários racistas, por parte de outros adeptos rivais e, inclusivamente, do próprio clube. E é precisamente este aspecto que importa realçar.
Na sequência da carga policial, motivada principalmente pelo rebentamento de petardos e uso de tochas, foram muitos aqueles que se apressaram a apontar os responsáveis: ‘os pretos lá dos bairros’. Não há grande interesse em averiguar a cor da pele dos adeptos ‘exaltados’.
O que está em causa e que não pode ser ignorado é esta constante associação entre classe social, ‘raça’ e violência. Este tipo de generalizações não é inocente ou baseado simplesmente na ignorância. A criminalização, marginalização e estigmatização de determinados grupos sociais está altamente enraizada na sociedade portuguesa.
Apesar do racismo não ocupar um lugar de destaque no debate público em Portugal ele está presente e não pode ser menosprezado. Mais do que qualquer outra modalidade, o futebol, pelas suas características, pela sua história, pela sua envolvência com as comunidades locais ou nacionais tem a capacidade de fascinar as pessoas, tornando-o num espaço importante de afirmação de identidades. Mas o futebol tem outra particularidade: constitui uma ‘via de acesso’ à interpretação da própria sociedade, isto é, aos valores e normas dominantes. Neste sentido, o futebol pode ser um ponto de partida para uma discussão mais aprofundada sobre o autoritarismo, o preconceito de classe e o racismo que caracterizam a cultura portuguesa.