Gente boa também mata

Por Lelê Teles, enviado para o Portal Géledes

Reprodução/ Twitter

Quem reclamou de 2016 e apostou que ‘17 seria melhor, quebrou a cara logo no réveillon.

É que na noite da festa das roupas brancas, ao invés das sete ondinhas, um sujeito pulou um muro, arma em punho, e passou a disparar freneticamente.

Fez 13 vítimas, entre elas a ex-esposa, o filho pequeno e ele próprio.

Matou mais mulheres que homens.

A carta que deixou estava recheada de ódio às mulheres de maneira geral: “vadias ardilosas”.

Se um diabo desses tivesse acontecido em Berlim ou em Paris, os nossos bravos bonecos de ventríloquo d’além mar já estariam colocando na cena do crime o que eles chamam de estado islâmico.

Diriam que o terrorista deixou – eles sempre deixam – o documento de identidade cair debaixo da arma, para provar que ele era ele mesmo.

Aí falariam do defunto o que bem quisesse, defuntos não se defendem.

Diriam que o sujeito fez pesquisas na internet e havia ali algumas palavras de origem árabe como azeitona, xadrez, algarismo etc., o que automaticamente o ligaria ao terrível daesh.

Fazem isso porque buscam uma motivação, tentam montar uma narrativa para tentar compreender a mentalidade do criminoso por meio do discurso que o seu ato produz.

Mas o crime se deu aqui e, antes que o careca-capinador-de-maconha ligasse o assassino a alguma célula terrorista da tríplice fronteira, veio à tona algumas mensagens escritas pelo assassino.

E, veja que curioso, as mensagens eram na verdade uma compilação dos clichês estúpidos que a mídia passou a ventilar por aí, vocalizando e dando visibilidade a uns celerados como frota, Malafaia, Janaína Paschoal, Bolsonaro e afins.

Mas a nossa tão diligente mídia não se prestou a fazer essa associação, sequer tentou analisar o discurso de ódio do assassino.

Era só colocar lá um daqueles “papagaios-especialistas” e ele dizer: sim, é cria nossa, tudo o que ele disse ali nós estamos carecas de dizer aqui aos microfones e aos quatro ventos.

Bingo.

Veja um exercício simples: agrupe algumas fotos de cartazes usados nas raves cívicas e você terá um mosaico com todos os termos usados nas mensagens do criminoso.

Notem que o Facebook tá cheio de laiques para o tipo de postura assumida pelo sujeito: misoginia, machismo, ódio às esquerdas e aos direitos dos manos etc.

Porque a midiazona não fez esse tipo de relação? simples, associações são feitas quando são convenientes a quem as faz.

Nas caixas de comentários dos grandes portais, “homens de bens” tentam defender o agressor, culpar as vítimas e até dizer que fariam o mesmo.

Embora o nosso código penal seja claro ao definir a apologia ao crime como crime também, esses celerados não serão punidos, nem os portais que lhes dão visibilidade.

É a omissão conivente.

A impunidade é a alfafa desses bardotos.

Não falta quem diga que assassino era apenas um pai tentando exercer o seu sagrado direito de ser pai; mesmo que ele tenha feito isso matando o filho.

Em outro crime de ódio, o sujeito que espancou até a morte um ambulante no metrô de sampa – porque o trabalhador tentou impedi-lo de matar uma travesti – foi preso com uma camiseta do que dizem ser o nosso senhor jesus cristo e disse, na maior cara dura, que se considerava um homem de bem.

É o mesmo discurso usado na propaganda do ministério dos transportes: gente boa também mata.

E digo mais: se o cabra estivesse com alá desenhado estampado na camiseta automaticamente o crime teria conotação religiosa, esses barbudos que odeiam a liberdade e o estilo de vida ocidentais.

Como era o cristo, o cagação de raiva de malafaia não foi associada como motivadora dessa homofobia.

Voltemos à noite do réveillon.

O assassino-suicida – defendido por tanta gente de bens – se mostra perturbado com o feminismo, com os direitos humanos, com os presos que vivem num playground com salário mensal e três refeições por dia, com a vagabunda da Dilma, com a corrupção que gera microcefalia(?), com a lei maria da penha…

O estado progressista e a conquista de direitos pelas minorias eram um tormento pra ele.

O crime ocorrido na noite de réveillon em campinas é um crime de ódio e intolerância.

É uma desumanidade de quem não reconhece alteridades, só a sua presumida autoridade.

Foi, igualmente usando esses clichês baratos e confusos, tão difundidos pela midiazona, que um pai matou o filho universitário em Goiânia e depois se matou.

O garoto tinha simpatia pelas ocupações e pelas ideias progressistas.

Era o outro dentro de casa.

O discurso do ódio motiva a eliminação do outro, do inimigo, mesmo que o sujeito se sacrifique como exemplo de purificação.

É o tal suicídio altruísta descrito por Durkheim.

É só ler as mensagens que o criminoso deixou, para justificar o injustificável, que você enxerga a mão que manipula as cordinhas.

Até agora, sabe-se quem puxou o gatilho, mas quem o motivou?

Questões enigmáticas.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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