Gerações de mulheres quilombolas no Litoral Negro do Rio Grande do Sul

Gerações

Sou Maria, Maria da Costa

Rasguei o mar, aos prantos

No porão do tumbeiro,

Esperançar foi meu devaneio

No Litoral Negro, a maternidade

Mãe na senzala, vó na liberdade

No Litoral Negro do Rio Grande do Sul, os imóveis onde estão assentadas as famílias quilombolas são conquistas de muitas mulheres negras que, na época da escravidão, conseguiram negociar um pedaço de terra e a liberdade para si e para suas famílias. Encontramos seus nomes nos testamentos que oficializaram as heranças: Thomázia, Leonora, Rita, Joaquina, Maria, Joana e Inácia, para citar aquelas que são as ancestrais da comunidade quilombola de Teixeiras, que iremos apresentar aqui. Esse quilombo contempla a sonhada entrada pela porta da liberdade, a construção e a manutenção da família negra. Possui rastros, traços, trilhas, hortas e antigas casas de antepassadas queridas.

Local de redes de fé, em Nossa Senhora do Rosário, que apareceu na beira da água para proteger a comunidade negra. Território das parteiras que percorreram o litoral para amparar as mães e os recém-nascidos. Espaço de práticas de benzedeiras que curam o corpo, a alma e salvam a lavoura. Gleba para arar, plantar e colher, os produtos do seco, batata, cebola, milho. Quinhão de campo, onde as mãos calejadas tecem os cobertores de lã de ovelha. Torrão de saberes e sabores que emanam dos doces e das demais refeições. Histórias que se aquecem à beira do fogão a lenha, enquanto a água do chimarrão esquenta. 

Nesta narrativa, viajaremos até a comunidade quilombola de Teixeiras, que está assentada na localidade de São Simão, município de Mostardas, no litoral do Rio Grande do Sul. Na primeira metade do século XIX, os campos da Caieira eram propriedade de três irmãos portugueses – Ana Tereza de Jesus, Rosa Tereza de Jesus e Manoel Teixeira Batista – que registraram em seus respectivos testamentos uma enorme façanha de 15 pessoas escravizadas: a conquista da liberdade, de imóveis e de alguns outros bens como rebanho e ferramentas.

Nestas terras, temos várias gerações de mulheres, mas iremos focar na história de Dona Osvaldina Costa Carneiro e de suas duas filhas, Magda e Marisa. Compreenderemos as gerações de mulheres quilombolas a partir das contribuições dos historiadores Ira Berlin e Rodrigo Weimer, que trabalharam com o recorte geracional em famílias negras em suas respectivas pesquisas. Dividimos as experiências das mulheres da família dos Teixeira em quatro gerações: geração de Maria, geração de Teodora, geração de Geraldina e geração de Dona Osvaldina.

Geração de Maria: de escravizada a liberta

A ancestral mais longínqua da família dos Teixeiras que encontramos, até o presente momento, é Maria, que trabalhava na Caieira e que foi listada no testamento de Roza Tereza de Jesus. Segundo tal documento, Maria era africana de nação Benguela. Nos registros de batismo, o nome de Maria aparece, na primeira metade do século XIX, pelo menos quatro vezes: como mãe de Inácia e de Manoel e como avó de Joaquim e de Teodora. Uma família quilombola tecida no cativeiro, mas que estendeu seus laços na liberdade. 

De acordo com o inventário, aberto alguns anos após o testamento, podemos visualizar o cenário onde provavelmente Maria desempenhava suas atividades. No referido documento, encontramos, além das terras e de um rebanho, pequenos itens como colheres de ferro, colheres com cabo de pau, caixas, além de alguns móveis que ornavam a casa, como mochos de madeira, cadeiras de sola e uma mesa pequena. Deparamos ainda com itens de cozinha onde Maria poderia preparar e servir as refeições: pratos de pó de pedra, panela de ferro e uma chicolateira.

Com as ferramentas herdadas, Maria poderia preparar a terra com o arado velho, plantar, colher e fazer farinha de trigo no pequeno moinho de mão. Ou ainda com a lã tosquiada das ovelhas, fazia os fios na roda de fiar e, posteriormente, tecia cobertores e roupas no tear. A carreta velha herdada era um importante meio de locomoção pelo litoral que poderia levar ao encontro de outros libertos e escravizados da região, redes fundamentais para a manutenção deste Litoral Negro.

Geração de Teodora: o legado da liberdade e da terra

Seguindo nossas gerações de mulheres negras, temos Teodora Teixeira, que deu à luz Luciana Teodoro Teixeira no ano de 1864. Esta geração foi marcada pelas memórias da escravidão, mas também pelas experiências de liberdade. Teodora e Luciana mantiveram as terras herdadas por seus ancestrais, pelo menos em parte, e tiveram que ir em busca de outras possibilidades de sobrevivência, como desempenhar atividades em fazendas da região, por exemplo. Essas atividades provavelmente eram intercaladas com o plantio nas próprias terras. No censo realizado em 1920, no Rio Grande do Sul, o nome de Luciana Teodoro Teixeira figura entre os moradores de Teixeiras, o que indica a longevidade da presença da família nas terras que seus ancestrais herdaram no século XIX.

Nos dados do matrimônio de Antônio, filho de Luciana, consta somente o nome de sua mãe. Sua neta, Magda Carneiro, lembra que seu avô Arnaldo contava que Luciana tinha filhos de pais diferentes e que um destes filhos era “cria roubada”, expressão que indica que Luciana teve um companheiro branco que não assumiu o filho. Além disso, ao passarem pela rodoviária da cidade de Mostardas, o avô comentava que o atendente era seu parente. Magda recorda que não entendia como que um homem branco poderia ter laços sanguíneos com seu avô e o indagava, mas ele sempre desconversava.

Rememorando esta situação, Magda pensa na possibilidade de o seu avô ser a “cria roubada”, pelo que ele falava e pela sua aparência, pois possuía traços fenótipos de branco. Possivelmente estes traços são oriundos de seu pai, Arnaldo. Magda Carneiro lembra que sua bisavó Luciana trabalhava nas fazendas das redondezas. Nesta geração o legado de terra e de liberdade foi fundamental para viver uma emancipação em diálogo com outras pessoas negras da região.

Geração de Geraldina: arar e tecer

A terceira geração é a de Geraldina Maria da Silva, que se casou com Arnaldo Teodoro Teixeira, filho de Luciana Theodoro Teixeira, no ano de 1924, na Igreja de Mostardas, aos 34 anos de idade. Conforme dados de seu matrimônio, era filha de Maria Júlia Conceição, de quem por enquanto não temos mais informações. Esta geração passou por uma experiência bem intensa de demarcação das terras e fragmentação em lotes individuais, a doação lá do século XIX, para o coletivo de 15 pessoas, com a cláusula de inalienabilidade foi desfeita. Nesta época houve aumento do plantio do arroz, e dos vizinhos algozes pelos terrenos alagadiços, antes desvalorizados, mas agora fundamentais para o cultivo do grão. As famílias negras foram alvo de várias expropriações, inclusive por parte do Estado brasileiro.

Segundo a memória quilombola, Geraldina era agricultora, trabalhava nas lides domésticas, fazia doces, pães e cobertores. Os cobertores de Mostardas sempre foram bem conhecidos pela região. Saint-Hilaire, que esteve no litoral na década de 1820, ao passar por Mostardas destacou que a principal riqueza da localidade era a criação de carneiros, atividade comum entre os estancieiros. Com a lã oriunda destes animais, as mulheres fabricavam, no tear, ponchos, vendendo inclusive para Porto Alegre, Rio Grande, entre outros lugares. Este vestuário, segundo Saint-Hilaire, era usado, exclusivamente, por pessoas negras e indígenas. No começo da década de 1900, uma das principais fontes de riqueza de Mostardas, especialmente daqueles que não tinham criação de gado, provinha da indústria de tecidos de lã e de algodão e de cobertores.

Dona Geraldina e seu esposo Arnaldo. Mostardas-RS, década de 1950. Fonte: acervo particular de Dona Osvaldina da Costa Carneiro (foto cedida à autora).

Geraldina estava em diálogo com a produção da localidade, afinal para além de usar os ponchos, adequados ao frio da localidade no inverno, possivelmente eram as mãos de mulheres negras, incluindo as suas, que teciam tais vestimentas, situação que Saint-Hilaire não mencionou. A seguir, podemos conhecer a foto de Geraldina e seu esposo Arnaldo. Na foto, os dois estão juntos, lado a lado. Não sabemos em que momento foi tirada, mas notamos que houve um preparo, tanto do fundo onde há um tecido pendurado, quanto do casal, que está muito bem vestido.

Dona Osvaldina: o fogão que aquece a água, esquenta a luta

Por fim, apresentamos a geração de Dona Osvaldina, 69 anos de idade, e suas filhas, Magda, 38 anos de idade e Marisa, 44 anos de idade. As três sempre desempenharam a atividade de agricultoras. Conheci Dona Osvaldina na primeira saída de campo que realizei na comunidade e foi em sua casa onde pernoitei nas demais visitas.

Cedo da manhã, por volta das sete horas, Dona Osvaldina prepara a primeira refeição do dia: café passado na hora, pães e o restante da janta, uma comida especial para o marido, José Francisco Dias Carneiro. Seu filho Márcio e seu marido vão cedo para a lida do campo. Por volta do meio-dia o almoço está servido. Notamos que a cozinha é o espaço de sociabilidade da família; é nela que Dona Osvaldina recebe as visitas. O fogão à lenha está sempre aceso para preparar as refeições e para fazer o chimarrão. Por volta das oito e meia, nove horas da noite, os moradores da casa já estão recolhidos, pois o dia começa cedo.

Magda, Dona Osvaldina e Marisa. Teixeiras-RS, 2018. Fonte: acervo particular de Dona Osvaldina da Costa Carneiro (foto cedida à autora).

Magda Carneiro, à esquerda da foto, sempre tem várias histórias para contar, especialmente porque fez vários trabalhos escolares sobre as experiências dos Teixeiras. Em suas memórias, estão presentes as expropriações realizadas pelo dono de um armazém local, além das histórias de seu avô Arnaldo e a fé em Nossa Senhora do Rosário, que herdou de seus familiares. Sua irmã Marisa foi vice-presidente da associação quilombola, lutando pelos direitos da comunidade. Atualmente as duas irmãs fazem parte da diretoria da associação.

No dia 26 de junho de 2022, a Associação comemorou os seus 16 anos, bem como os 196 anos da conquista de terras e de liberdade de seus ancestrais. É notável o engajamento da família de Dona Osvaldina pelo quilombo de Teixeiras e consequentemente pelas terras que Maria, nossa personagem inicial, herdou no século XIX.

As gerações de mulheres da família Teixeiras foram marcadas pelo uso da terra. A geração de Maria conquistou um imóvel que atualmente é ocupado por seus descendentes quilombolas. O espaço que outrora fora uma senzala passou a abrigar a parentela negra amalgamada com libertos e escravizados. Com o imóvel em mãos, a plantação de produtos do seco destacou-se; plantava-se para a subsistência e vendia-se o excedente. E, atualmente, a geração de Dona Osvaldina e suas duas filhas, Magda e Marisa, luta para reaver as terras de Maria e dos demais libertos legatários dos irmãos Teixeiras.

A árvore genealógica destas gerações apresenta outros tantos parentescos com outros libertos legatários da região, como os herdeiros do quilombo de Casca, os “negros da Figueira”, ou ainda os “negros que foram de José Carneiro Geraldes”, mas aí são outros laços e redes que podemos tecer em outro texto.

Assista ao vídeo da historiadora Claudia Daiane Garcia Molet no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual).

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