No Brasil, fomos acostumados a chamar os ricos de “elite”. Meus olhos foram abertos para o absurdo da expressão pelo artista Emicida, que fez o óbvio: buscou no dicionário o significado da palavra – “eu não utilizo a palavra elite porque o significado da palavra elite é ‘o que uma categoria tem de melhor’”, alertou o rapper certa vez. Já Carlos Drummond de Andrade, em seu magnânimo poema “A Luis Maurício, Infante”, diz: “as palavras serão servas de estranha majestade”. Suspeito que o gênio de Itabira queira dizer que as palavras costumam andar fora de lugar por aqui.
Nesta semana, fomos apresentados a um artigo do prestigiado publicitário Washington Olivetto, um representante da elite branca brasileira, hoje radicado em Londres. Olivetto reproduz em seu libelo pelo privilégio branco a rotina de abastados jovens em suas supostas aventuras pelo fabuloso mundo dos ricos no Rio de Janeiro, e o faz com a naturalidade de quem goza da falácia da meritocracia.
De início, o fetiche primaz das elites brasileiras: o trato da trabalhadora doméstica como um item de casa, um mimo. Vejam, ela agora cuida das coisas daquela família no Rio, um “must”. Segue o texto enfileirando alegorias, os rapazes até enalteceram o corpo e a culinária das mulheres negras, muito gentis. Comeram o feijão, admiraram as “mulatas”, enfim, Olivetto fez o que tem sido feito com as negras e negros no Brasil: fetichiza, objetifica, trata como coisa. Nada novo. Sempre inaceitável.
São muitas as camadas de distanciamento da realidade da imensa maioria da população brasileira, no entanto, prefiro me dedicar aos usos dos privilégios, sobretudo o de ser branco. Em “Pacto da Branquitude”, Cida Bento nos ensina que a meritocracia no Brasil é uma mentira, pois, como falar em meritocracia num país forjado sobre o sangue da maioria da população para uma minoria gozar? Ora, é desse gozo que Olivetto fala: o gozo de ser dono do poder, de poder escolher admirar mulatas e até comer seus feijões, sem ser incomodado. O gozo de sentar à mesa com um gênio da música, também negro e sequer ser capaz de observar o entorno.
Na última semana foi publicado o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e nele pode-se perceber que o principal vetor de violência no Brasil é a raça, sendo as negras e os negros as principais vítimas das diversas violências no país. Apesar de uma redução geral, a violência contra negros e negras aumentou. No caso das negras, são 62% das vítimas de feminicídio, fruto da misoginia, do machismo e do racismo. Os corpos das mulheres negras são subjugados no Brasil, da escravidão aos dias atuais.
Dos estupros cometidos por senhores, passando pela forçada miscigenação, alcançando os alarmantes dados de violência, a violação à mulher negra é regra e isso não parece despertar mínima sensibilidade no homem branco, rico, na famigerada “elite”.
É fundamental conhecer o passado trágico para evitar as repetições no presente. Cientes das permanências da escravidão, das incessantes violências reais e simbólicas contra os corpos negros. É preciso atenção e desejo de melhora. Ao ver o espaço que Olivetto tem para lançar no mundo sua carta em defesa dos privilégios, provaram mais uma vez a correção de Cida Bento, e ela nem precisou de uma pós-graduação de vida, ali, em uma semana no Rio de Janeiro.
Raoni Vieira Gomes é advogado criminalista, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais, pesquisador e autor do livro “Da chibata ao camburão – memória, raça e seletividade penal no Brasil” (Milfontes)
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