Grupo de estudos Atinúké aprofunda a pesquisa sobre o pensamento da mulher

Iniciativa aborda perspectivas que foram negligenciadas pela academia

Iniciativa aborda perspectivas que foram negligenciadas pela academia MARIANA CARLESSO/JC – Jornal do Comércio

Traduzido do Iorubá, Atinúké significa “aquela que merece carinho desde a gestação”. O termo de origem nígero-congolesa foi designado para Tatiana Machado ao ser iniciada no Batuque. Assim como a história e a cultura da matriz africana de valorização dos legados, a semente das Atinúkés germinou; sua luta criou raízes africanas em Porto Alegre, e a sua influência fez florescer o Grupo de Estudos sobre o Pensamento de Mulheres Negras Atinúké e, posteriormente, o Coletivo Atinúké.

“O que as mulheres negras escrevem é a partir de suas vivências”, aponta Nina Fola, mestranda em Sociologia e uma das idealizadoras do curso. Com essa perspectiva, o grupo busca unir a propriedade intelectual e as experiências de ser uma mulher negra para fortalecer os objetos de estudo do grupo. Criado em 2015, o Grupo de Estudos sobre o Pensamento de Mulheres Negras surgiu do encontro de Giane Escobar, Fernanda Oliveira e Nina Fola na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

A ideia de formalizar um grupo de estudos para abordar perspectivas que foram negligenciadas pela academia, culminou na criação do Curso Atinúké, que encontrou seu espaço físico no Ponto de Cultura Áfricanamente, no bairro Independência, na capital gaúcha. Em agosto de 2016, o curso foi iniciado com o objetivo de extrair intelectualidade de mulheres negras, inserindo-as nas discussões, acadêmicas ou não, através do entendimento de pluralidade do pensamento.

Distanciando-se da sistemática clássica das universidades, a metodologia utilizada nas aulas experimenta música, dança, teatro, textos acadêmicos e todas as relações possíveis de produção artística e científica. Já o coletivo Atinúké surgiu há dois anos para suprir demandas organizacionais do grupo de estudos e conta com 20 participantes atualmente.

“Buscamos refletir um pensamento diferente, distanciando-nos da visão eurocêntrica da academia, de forma que as pessoas consigam entender a pluralidade no pensamento de mulheres negras”, explica Fernanda. De um modo geral, as autoras trabalhadas são majoritariamente afro-brasileiras, mas algumas africanas também são objetos de estudo. Nas quatro edições até hoje, o Atinúké ensinou e aprendeu com mais de 120 mulheres que compartilharam seus conhecimentos e vivências através da produção teórica e cultural.

Para participar do grupo de estudos é necessário passar por um processo seletivo, no qual as organizadoras utilizam de critérios afirmativos para compor a turma. Embora as temáticas trabalhadas nas aulas tenham grande parte de influência da turma que a compõe, o plano metodológico conta com seis módulos, nos quais os temas pluralidade, religiosidade, afetividade, política e saúde são abordados pelo grupo, bem como um apanhado geral dos temas expostos. Para Fernanda, a definição de eixos de reflexão serve para entender a complexidade do pensamento, mas o compartilhamento de experiências torna cada turma única.

A Lei nº 12.711, sancionada em 2012 e conhecida popularmente como Lei de Cotas, abriu caminho para a inserção dos negros no Ensino Superior, mas isso evidenciou outros pontos a serem trabalhados dentro dessa questão. Como Nina expõe: “já estamos vivendo o resultado da lei de cotas, e nessa inserção maior da comunidade negra na universidade, a gente percebe a dificuldade em falar dos nossos temas”. Esse distanciamento serviu como uma motivação para a criação do projeto, que atua como uma via de mão dupla, tanto no sentido de aproximar quem não está inserida no meio universitário, quanto as acadêmicas que buscam aprofundar seus conhecimentos de forma plural e reforçada na base da troca de experiências.

Na questão de fortalecer referenciais teóricos relacionados aos objetos de estudo do grupo, o Atinúké firmou parceria com o Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), e a Festipoa Literária para a criação de um curso de extensão sobre a obra da escritora e ativista antirracista Sueli Carneiro. A realização de uma leitura sistêmica, e de um estudo direcionado sobre a obra de um pensador, é algo bastante comum no universo acadêmico, como interpreta Nina, mas trabalhar uma mulher negra com vasta produção é a confirmação desse novo momento do pensamento brasileiro.

Por meio desse fortalecimento de propriedade intelectual, a atuação do grupo de estudos e do coletivo também reflete a evolução acadêmica das participantes: “Nós mesmas começamos como uma doutora, uma doutoranda e uma mestranda no grupo. Hoje temos uma pós-doutora, quatro doutorandas e oito mestrandas nas mais diversas áreas”, conta Nina.

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