Grupo que idealizou o Dia da Consciência Negra teve de dar explicações à ditadura

FONTEpor Fernanda Canofre no Folha de São Paulo

Em um sábado de 1971, um grupo de 12 negros se reuniu em Porto Alegre, no Clube Náutico Marcílio Dias, próximo ao rio Guaíba. Fundado em 1949, quando os outros clubes da cidade não aceitavam afrodescendentes, o local cedeu a eles uma sala, que foi sendo organizada com mesas de fórmica, postas em forma de círculo. Ali, pela primeira vez, o 20 de novembro seria o Dia da Consciência Negra no Brasil.

A data marcava a morte de Zumbi dos Palmares, líder do quilombo que resistiu por 95 anos na Serra da Barriga, em Alagoas. Naquele dia, em 1695, Zumbi foi assassinado em uma emboscada e teve sua cabeça exibida em praça pública, depois de liderar a resistência por quase duas décadas.

Por horas, no clube gaúcho, homens e mulheres falaram sobre a história dele e do outro rei de Palmares, Ganga Zumba, sobre como os negros foram trazidos da África para o Brasil e o que foi a escravidão aqui. Ainda recitaram poemas de Castro Alves e Solano Trindade.

O advogado gaúcho Antônio Cortês que, em 1971, junto com outros três amigos, lançou a data do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra – Leo Caobelli:Folhapress

A ideia havia nascido das conversas entre quatro universitários gaúchos: Oliveira Silveira, Vilmar Nunes, Ilmo da Silva e Antônio Carlos Côrtes. Eles frequentavam rodas que questionavam havia tempos a legitimidade da data do 13 de maio para o povo negro.

Uma publicação da editora Abril e mais algumas pesquisas sobre o quilombo dos Palmares levaram o grupo à nova data: o 20 de novembro, da morte de Zumbi. Oliveira Silveira, que se tornaria um dos intelectuais negros mais importantes do país, levou a ideia aos amigos, que aprovaram.

Entre eles, o advogado Antônio Côrtes, 69, que ainda vive em Porto Alegre. Ele também só descobriu Zumbi quando tinha cerca de 20 anos e participava das discussões com outros jovens negros.

“Fizemos uma analogia com a construção mítica do Tiradentes. Em 1971, formalizamos que, se a morte dele era lembrada, também tínhamos que lembrar a de Zumbi”, lembra o advogado. “Estruturamos então a proposta de substituir o 13 de maio pelo 20 de novembro, que seria uma data escolhida por nós, não pela oficialidade. Era uma tomada de consciência.”

​Com os três amigos, Côrtes fundou então o Grupo Palmares, uma associação cultural para promover estudos de história e arte sobre o papel dos negros e mestiços no Brasil. Foi em uma reunião na casa dos pais dele que escolheram o nome em alusão ao quilombo que resistiu por quase cem anos.

A época, porém, era de ditadura militar. O AI-5 havia endurecido ainda mais o regime, três anos antes. Quando uma nota foi publicada no jornal, com o título “Zumbi – A homenagem dos negros do teatro”, para anunciar o ato evocativo programado para o dia 20, o nome do grupo, talvez confundido com a organização armada VAR-Palmares, chamou a atenção.

Côrtes e Oliveira Silveira foram intimados pela Polícia Federal. Para serem liberados pela censura, tiveram que descrever todo o roteiro do encontro e convencer os agentes de que não eram “subversivos”. O documento, com o carimbo de “aprovado”, ressalta que qualquer mudança teria de ser submetida à autorização.

“Nenhum de nós tinha vinculação político-partidária, éramos apenas estudantes e queríamos a valorização do negro. Essa era a causa maior”, diz Côrtes. “Mas eu lembro que o meu pai sempre dizia para a gente não esquecer os documentos quando saísse de casa.”

​​REPERCUSSÃO

Dois anos depois da primeira celebração, o questionamento do grupo gaúcho virou notícia nacional. ​”Esse foi o momento mais glorioso da história do povo negro no Brasil e, infelizmente, nossa historiografia o diminui no tempo e até na apresentação dos fatos principais”, dizia Oliveira Silveira ao Jornal do Brasil.

A partir dali, atos relembrando figuras negras históricas e esquecidas passaram a ser replicados em outros cantos do país, todo mês de novembro.

“Quando eles propõem essa data, mais do que uma alternativa, estão propondo a ideia de liberdade conquistada. Isso marca o movimento negro contemporâneo no Brasil em manifestações importantes, como a marcha pelo aniversário de 300 anos de Zumbi, que aconteceu em 1995″, explica o pesquisador Deivison Campos, que estuda o movimento negro e a história do Grupo Palmares.

Em 1978, quando o Movimento Negro Unificado lançou o manifesto adotando a data como nacional, o Palmares encerrou suas atividades. “Vimos que já tínhamos alcançado o objetivo. O importante era que a data e seu simbolismo estavam firmados”, diz Côrtes.

Ele se tornou advogado de causas por racismo e injúria racial, pegando ocorrências engavetadas nas delegacias de polícia e levando a juízo.Côrtes afirma que perdeu as contas de quantos casos defendeu, mas que passam de 200. Oliveira, mesmo com um trabalho importante de pesquisa e literatura, acabou sendo reconhecido mais depois da morte do que foi em vida.

FERIADO NACIONAL

Em 2003, o Dia da Consciência Negra entrou no calendário escolar com a lei que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Oito anos depois, a então presidente Dilma Rousseff (PT) oficializou a data como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

Nessa data, porém, só é feriado em locais com leis municipais ou estaduais específicas, como na cidade de São Paulo.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, onde surgiu o Grupo Palmares, apesar de uma lei de 1987 ter incluído o dia no calendário oficial, não é feriado. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em um relatório publicado em 2017, a capital gaúcha é a cidade brasileira com maior desigualdade entre negros e brancos no Brasil.

Desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados uma lei que propõe firmar a data como feriado nacional definitivo. O autor é o deputado Valmir Assunção (PT-BA). Duas comissões —a de Cultura e a de Constituição, Justiça e Cidadania— deram parecer favorável à proposta. Na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços, porém, ela foi rejeitada. O próximo passo é a análise em plenário.

“[Ver se tornar feriado nacional] é um sonho. Um sonho que eu quero alcançar em vida. O Brasil só vai ser uma grande nação no dia em que o negro conseguir ter seu espaço”, diz Côrtes.

-+=
Sair da versão mobile