Hemetério, Rufina e Coema: professores negros e o legado da educação

Em outubro de 1910, cerca de duzentas moças seriam solenemente diplomadas professoras naquela que prometia ser uma “brilhantíssima festividade” promovida pela Prefeitura do Distrito Federal (à época a cidade do Rio de Janeiro). Como havia três anos que não ocorria uma cerimônia desse tipo, seriam reunidas as concluintes dos anos de 1907, 1908 e 1909. Dentre as formandas estava a jovem Coema Hemetério dos Santos, que naquele mesmo mês completaria vinte e dois anos de idade. Seu nome, de origem Tupi, “o início da manhã”, foi a forma escolhida por seus pais, Hemetério José e Rufina Vaz, para marcarem o início da família Hemetério dos Santos. Formada a partir da união de um casal de professores negros, os Hemetério dos Santos procuraram transmitir o legado do magistério à menina “flor de beleza” e “luz de amor”.

Nascida em 20 de outubro de 1888 na Corte do Rio de Janeiro, Coema cresceu cercada pelas letras, acessando e dominando todos os códigos da cultura letrada. Enquanto a menina crescia, sua mãe, Rufina, conciliava a maternidade, o magistério e os estudos na Escola Normal para obter a diplomação e um lugar efetivo no magistério público primário. Além dos objetivos pessoais de formação, havia a busca pela segurança material que o emprego traria à família. De seu avô, o famoso tipógrafo Francisco de Paula Brito, Rufina herdara memórias e o importante legado das letras. Nada de fabulosas heranças materiais provenientes desse avô ou de qualquer outro membro de sua família. Portanto, todos os esforços para a obtenção do diploma e a efetivação no magistério eram muito necessários. 

A formação na Escola Normal iniciada em 1888 só foi concluída em 1896. Enquanto terminava seus estudos, conciliava a função de professora pública interina (desde 1891) com a maternidade dos quatro filhos nascidos nesse mesmo período. Em 1898, dois anos depois da diplomação e já há sete anos no ofício, Rufina alcançou a promoção ao posto de Professora Catedrática – o topo da carreira no magistério público municipal. Essa promoção trouxe benefícios significativos: a efetivação no magistério público, maior segurança salarial e o estabelecimento da família em casa oferecida pela administração municipal. 

Por sua vez, o professor Hemetério, o pai da família, investia esforços para ocupar lugares de prestígio no magistério carioca. À época da “brilhantíssima festividade” de 1910 ele já havia se consolidado como renomado professor do Colégio Militar e da Escola Normal. Reunindo autoridade intelectual, boas relações sociais, formas positivas e afirmativas de auto apresentação, veemência e solidez em seus argumentos, o professor maranhense construía um lugar de respeitabilidade para si e sua família. A conjugação entre a apresentação estética e uma sólida bagagem intelectual desferia golpes contra o racismo alimentado por estereótipos e por perspectivas que procuravam inferiorizar a população negra.  “O negro nunca foi fraco, imoral ou ladrão”, ele dizia… e comprovava com seu corpo e mente.

O Magistério, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1909, p. 01. Fonte: Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional/RJ.

O destaque alcançado pelo professor de Língua Portuguesa e Filólogo também era fruto das conferências realizadas e artigos publicados em diferentes periódicos da cidade. Nesses dois espaços ele defendia as pautas centrais de sua produção intelectual, o acesso à educação formal e a luta contra a discriminação racial. Diante dos ataques cruentos frequentemente recebidos das páginas de periódicos muito populares como Careta e Fon!Fon!, associando-o a primatas, símios e macacos, ele sabia que o racismo não se encerrava quando pessoas negras dominavam os códigos culturais hegemônicos. 

Mas também estava muito claro para Hemetério que a exclusão da população negra dos estabelecimentos escolares perpetuaria a desigualdade e o racismo. Por isso, suas conferências traziam à pauta “o protesto contra a exclusão das crianças de cor de certos estabelecimentos de ensino”, lembrando a todos que “os indivíduos de cor preta foram os que mais colaboraram para a constituição da nacionalidade brasileira”. Como acertadamente definiu o historiador Aderaldo dos Santos, a educação foi sua arma para atacar de frente o racismo que atingia todas as pessoas negras, fossem elas intelectualizadas ou não.  

Seguindo os caminhos dos seus progenitores, em especial de seu pai, Coema Hemetério atuou em escolas públicas primárias e esteve à frente da cadeira de Língua Portuguesa, formando outras professoras matriculadas no curso noturno da Escola Normal. Em 1913 ela e a professora Arminda Bastos estavam encarregadas das turmas do 1º ano do Curso Noturno, enquanto Hemetério ministrava as aulas para as alunas do 3º ano no mesmo horário. A carreira de Coema alcançou outros espaços para além da sala de aula: assim como o pai, ela foi colaboradora dos periódicos A Escola Primária e O Magistério.

O Magistério, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1909, p. 01. Fonte: Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional/RJ.

Ao longo de sua trajetória no magistério, Coema seria sempre associada à figura paterna, tanto pelo reconhecimento e prestígio de que ele gozava, quanto pela efetiva parceria intelectual entre os dois. Ela carregava o legado familiar e, segundo a biografia publicada pela revista A Cidade, era a “dilecta filha do professor Hemetério dos Santos” que na Escola Normal “não desmereceu a fama que trouxera da escola primária”. Formando-se com “raro brilhantismo”, a “herdeira natural dos dotes didácticos” do “reputado professor” também se apresentava ao público com estética apurada, transmitindo uma imagem que simultaneamente remetia à beleza física e às qualidades intelectuais:

Professora Coema Hemetério dos Santos Pacheco. A Cidade, Rio de Janeiro, 02 de abril de 1913, p. 30. Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional/RJ. 

À época da publicação biográfica, além de professora da Escola Normal, Coema atuava como adjunta de 2ª classe na 6ª escola feminina do 5º distrito, “sob a direção da provecta professora que é a senhora sua mãe, D. Rufina dos Santos.” Duas gerações de professoras negras que em seu cotidiano lidavam com os desafios de liderar a instrução pública primária na capital republicana. Ao mesmo tempo, eram duas mulheres negras atravessadas por um racismo que se dizia científico e afirmava categoricamente que mulheres negras, assim como os homens negros, tinham uma “sexualidade exacerbada”, eram intelectualmente inferiores e estavam fadados ao fracasso e às mais diversas deformidades físicas e intelectuais. 

Em 1909, pouco antes da festa de diplomação, Coema, que já era professora na Escola Normal, foi proibida pelo Diretor Geral da Instrução Pública de avaliar suas alunas. Era função docente avaliar alunos e alunas, um lugar de autoridade que publicamente foi retirado da jovem professora negra. Naquela sociedade onde imperavam o racismo e o poder masculino, foi o pai da família, o professor Hemetério dos Santos, quem tomou a palavra para duramente contestar tal afronta. 

Em carta enviada ao jornal O Paiz, um dos mais prestigiados da cidade do Rio de Janeiro, ele narrou os caminhos percorridos em busca do necessário desagravo, solicitando providências diretamente do prefeito municipal, o Dr. Serzedello Correia. Hemetério não mediu esforços e protestou “bravamente, fortemente e energicamente” em defesa de sua filha, “duplamente ofendida, por ser mulher e por ser subordinada”. Não há registros da participação da professora Coema nessa petição e tampouco em outros artigos e conferências públicas realizadas pelo professor Hemetério dos Santos. Mas a minha imaginação histórica suspeita que a farta e combativa produção intelectual, antirracista e em prol da educação popular foi pensada por várias mentes no seio dessa família. 

Acumulando o domínio da cultura letrada e a condição de livres por mais de duas gerações, os membros da família Hemetério dos Santos – e muitas outras pessoas negras ao longo da nossa história – tinham plena compreensão de que esse era um dos mais poderosos meios para conquista e afirmação da liberdade e da própria humanidade. E embora possuíssem todos os requisitos que os habilitavam à participação no universo letrado – além de algum recurso material –, eles não ficaram ilesos à discriminação racial que atravessava as vidas de todas as pessoas negras.

Construindo agências intelectuais e ocupando espaços através do magistério, a família Hemetério dos Santos personificava a oposição frontal ao racismo escancarado que se dizia científico e alardeava aos quatro cantos uma suposta inferioridade das pessoas negras. A história desses professores não está dissociada das experiências de outras famílias e indivíduos negros que frente às muitas formas de exclusão usaram táticas diversas para adentrarem os portões escolares. Importantes pesquisas realizadas por historiadores e historiadoras da educação – como Maria Lúcia Müller, Alexandra Lima, Ione Celeste Sousa, Alessandra Schueller, Surya Pombo, Jucimar Cerqueira, dentre outros – têm mostrado que o acesso à instrução foi busca constante nas vidas de pessoas negras livres, libertas e escravizadas. Para aqueles homens e mulheres, velhos ou moços, estava claro que dominar os códigos do universo letrado era uma ferramenta fundamental na construção da vida livre e na luta por acesso à cidadania. 

Como aponta a historiadora Luciana Brito, desde o século XIX, professores e professoras negras tiveram papel extremamente importante no seio da comunidade negra livre nas Américas, representando possibilidades concretas de mobilidade social. Enquanto agentes primordiais no processo de construção da educação pública, Hemetério, Rufina e Coema, dentre outros professores e professoras negras, construíram um legado que atravessou gerações. Esse legado afetou os destinos de seus descendentes diretos e os de outras famílias trabalhadoras, algumas delas negras, cujos filhos foram seus alunos nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. E, mais de um século depois, essas trajetórias de professores negros seguem nos ensinando valiosas lições sobre a luta por acesso à educação formal como importante ferramenta de afirmação das nossas existências.

Assista ao vídeo da historiadora Luara dos Santos Silva no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: (EF09HI03) Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados. 

(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.

Ensino Médio: (EM13CHS601) Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país

Luara dos Santos Silva Doutoranda em História Social, Universidade Federal Fluminense (UFF); Professora de História da Educação Básica na Rede Pública de Ensino E-mail: [email protected];Instagram: @luarasantos07


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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