40 anos do Adé Dudu: a história do Grupo de Negros Homossexuais

Há 40 anos, em março de 1981, surgiu em Salvador, na Bahia, o Adé Dudu, o Grupo de Negros Homossexuais. Com um nome originado no iorubá, significando “negro homossexual”, o grupo contou em sua fundação com diversos militantes do Movimento Negro como Tosta Passarinho, o jornalista Hamilton Vieira (que utilizava o pseudônimo Estêvão dos Santos), Ermeval da Hora e Wilson Bispo dos Santos, hoje Wilson Mandela. Contudo, este grupo que teve relevante atuação, nas palavras do próprio Wilson Mandela, contra as estruturas racistas e homofóbicas da sociedade e dos movimentos sociais por uma década, acabou caindo no ostracismo nos anos seguintes e quase não é lembrado nas narrativas históricas e discursos contemporâneos do Movimento LGBTI+ brasileiro, anteriormente Movimento Homossexual.

A história do Movimento Homossexual Brasileiro costuma ter o seu início demarcado pela historiografia especializada com a fundação, em 1978, do jornal Lampião da Esquina e do grupo Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, em São Paulo. Todavia, uma análise atenta e crítica sobre a história do Movimento muito propagada na atualidade permite observar uma narrativa em larga medida homogeneizadora, que privilegia as militâncias urbanas, brancas, intelectuais e de classe média, excluindo vivências políticas outras, como as dos negros homossexuais. Na contemporaneidade, não podemos esquecer daquele maio de 1978, por exemplo, quando ocorria em Salvador, segundo consta em um panfleto do grupo Adé Dudu publicado em setembro de 1984, uma série de conferências com a participação de Lélia Gonzalez acerca do 13 de maio. De acordo com relato de Wilson Santos, o já mencionado Wilson Mandela, reproduzido na primeira página do documento: 

De repente, do meio da plenária, ergue-se uma figura de postura, negro, voz empostada e começa a se posicionar sobre a discriminação contra os negros homossexuais, rechaçados tanto pelos brancos como pelos negros. O susto foi geral; as pessoas não estavam acostumadas àquele tipo de discussão, além de não esperarem tanta coragem naquele momento. E realmente era preciso coragem, pois naquela época ainda não se discutia a homossexualidade enquanto preferência sexual normal; o Movimento Homossexual no Brasil ainda não estava organizado; nesse mesmo período é que se criaria o grupo SOMOS de Afirmação Homossexual em São Paulo. Passado o primeiro momento de susto, a plenária […] termina aplaudindo o companheiro PASSARINHO, hoje membro do Grupo ADÉ DUDU. Estava lançada mais uma problemática dos negros no Brasil: a discriminação mais acentuada contra os negros homossexuais. 

Capa do folheto publicado pelo grupo Adé Dudu em setembro de 1984. Fonte: cópia fac-símile do original.

Também não podemos esquecer da edição n. 4 do jornal O Inimigo do Rei, de março de 1979, que trouxe em sua capa uma chamada, em letras garrafais, na qual se lia “Além de Preto, Bicha!” A matéria, assinada pelo jornalista Hamilton Vieira, tratava de uma série de depoimentos de homossexuais masculinos e mostrava como era mais profunda a discriminação sofrida pelos “negros homossexuais por parte da sociedade”. Conforme também apontado no panfleto do grupo Adé Dudu publicado em 1984, “a palavra falada do companheiro Passarinho e a palavra escrita do jornalista Hamilton Vieira são dois marcos da discussão ‘ser negro e homossexual’”. Ambos os fatos serviram para impulsionar os anseios daqueles militantes de fundarem um grupo que atendesse às suas demandas na luta não só contra o racismo, como já faziam a partir da militância no Movimento Negro Unificado (MNU), como também contra a homofobia.

Fundado em 1978 e lançado publicamente durante um ato público nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho daquele ano, num evento que reuniu cerca de duas mil pessoas durante a ditadura civil-militar brasileira, o Movimento Negro Unificado instituiu as bases para uma nova forma de luta contra o racismo e a discriminação racial no país. Todavia, ainda que a organização do MNU tenha promovido uma abertura para as discussões feministas e tenha se aproximado do Movimento Homossexual que se organizou no sudeste, especialmente em São Paulo, o Movimento ainda estava muito longe de consolidar os seus ideais de luta unificada em decorrência de desavenças internas ou do sentimento de não representatividade por alguns segmentos, como as mulheres negras e os homossexuais negros.

Atualmente o MNU consegue congregar entre os seus objetivos de luta antirracista as pautas das mulheres negras e dos negros homossexuais. Mas, em 1979, as dificuldades para mobilizar de maneira conjunta essas agendas ainda levavam, por exemplo, as integrantes mulheres do Movimento a denunciarem o machismo dos homens negros. Não à toa, segundo Edward MacRae, durante o Primeiro Congresso do MNU organizado no Rio de Janeiro em dezembro daquele ano, as mulheres do Movimento decidiram realizar uma sessão separada para discutir questões próprias a elas. Nessa mesma sessão, na tentativa de apontar as proximidades e semelhanças entre as causas das mulheres e dos homossexuais, vítimas do machismo estrutural oriundo do sistema patriarcal, ocorreu nova manifestação por parte de Passarinho, bastante similar àquela realizada por ele em maio de 1978 em Salvador, denunciando como os dois grupos enfrentavam problemas similares de opressão e subalternização.

Essa teria sido, segundo MacRae, a primeira discussão pública da questão dos negros homossexuais em uma reunião interestadual do MNU. Não obstante, até a fundação do grupo Adé Dudu muita água precisou rolar e passar debaixo dessa ponte, como diz o ditado. Conforme demonstra a ata-relatório do Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais, ocorrido no dia 6 de abril de 1980 no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, algumas “bichas pretas” relataram sentir-se discriminadas quando alguém propunha ou falava da criação de grupos de homossexuais negros, alegando recusar o “paternalismo dos brancos” quando esses lhes ofereciam espaço.

Poucos meses depois, porém, no dia 26 de julho de 1980, “durante uma reunião geral do Grupo Somos [em São Paulo], que buscava então se reestruturar após a cisão que acabava de sofrer, quatro integrantes negros do grupo apresentaram uma visão das manifestações de racismo dentro do Somos e no meio homossexual em geral”, escreve MacRae. Aqueles militantes decidiram formar, a partir do Grupo Somos, o Grupo de Negros Homossexuais (GNH), um embrião do que viria a ser a luta organizada dos homossexuais negros. O GNH, porém, não durou mais que dois anos. Ainda assim, foi um indicativo de que os militantes negros do Movimento Homossexual estavam começando a mudar, aos poucos, a postura anteriormente defendida no Teatro Ruth Escobar, em 1980.

E foi, então, que, formado a partir de uma dissidência do núcleo do MNU da Bahia em 1981 e visando atuar contra a reprodução do racismo e do machismo, bem como contra o que atualmente entendemos como homofobia, que nasceu em Salvador o Adé Dudu, o grupo formado unicamente por homens negros homossexuais. Se aqueles militantes passaram a não se sentir representados pela militância homossexual branca e perceberam que dentro do Movimento Negro eram vistos como “vergonha da raça” ou influenciados por um suposto “vício branco inexistente na África”, os militantes do Adé Dudu se levantaram contra o racismo do Movimento Homossexual Brasileiro e contra o machismo e a homofobia do Movimento Negro.

Fato é que, apesar de todas as dificuldades enfrentadas e parte do movimento negro atual ainda adotar um silêncio sobre a homossexualidade que mais atrapalha do que contribui para o avanço das causas, ao longo de pouco mais de uma década de existência, o Adé Dudu, influenciado por vários militantes e intelectuais negros e homossexuais como o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, atuou de maneira intermitente contra o racismo e a homofobia. Estiveram presentes, entre os dias 8 e 15 de julho de 1981 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, durante a 33ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), compuseram a Comissão Organizadora do II EBHO – o Segundo Encontro Brasileiro de Homossexuais, em 1984, em Salvador, além de várias outras ações.

Infelizmente, após uma década, o grupo se desfez. Muitos militantes migraram para outros campos de atuação, outros faleceram, tornaram-se ancestralidade. Mas a experiência pioneira do Adé Dudu deixou sementes que brotaram, por exemplo, em 1995, quando, na mesma Salvador, surgiu o Quimbanda-Dudu, grupo de negros homossexuais ligados ao Grupo Gay da Bahia (GGB), que ao longo de uma década, mais ou menos, atuou em favor dos direitos humanos e contra o racismo, o machismo, a homofobia e também contra a epidemia do vírus hiv e da aids. Seu folheto de apresentação, quatro edições dos Boletins (2000-2003) e oito edições do jornal Alafia integram o Acervo Bajubá e estão disponíveis online para acesso, leitura e download. 

Outras sementes do Adé Dudu brotam ainda hoje quando cada bicha preta, como eu que escrevo este texto, consegue se erguer com orgulho e força e se colocar contra as violências e opressões do racismo e da homofobia. O grupo se desfez. Mas a sua fundação há 40 anos continua se repetindo todos os dias em nós, continua vivo em nós, nos jogando cada vez mais para frente. É a nossa história, nossa ancestralidade como dito algumas linhas acima. É certo que ainda sabemos pouco sobre a história da militância negra homossexual no Brasil, bem como sobre o Adé Dudu, e que ainda há muito para se descobrir, pesquisar e escrever (sendo este o principal objetivo da minha vindoura tese de doutorado). Mas o pouco que sabemos já é suficiente para nos encher de altivez e orgulho. Saibamos bater cabeça para aqueles homossexuais cuja história o Movimento LGBTI+ brasileiro não conta, aqueles a quem devemos muito se hoje podemos dizer “além de preto, bicha e com muito orgulho”!

Deixo como dica, por fim, o convite para que visitem, após a leitura deste texto, a exposição virtual Adé Dudu – Caminhos LGBT+ na luta negra, disponível no Google Arts & Culture e desenvolvida sob a curadoria de integrantes da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, em parceria com o Geledés e o Acervo Cultne.

Assista ao vídeo do historiador João Gomes Junior no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI20 (9º ano: Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar); EF09HI22 (9º ano: Discutir o papel da mobilização da sociedade brasileira do final do período ditatorial até a Constituição de 1988); EF09HI23 (9º ano: Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto); e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos); e EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).


João Gomes Junior

Professor e poeta, historiador (UFRRJ-IM), mestre em História Social (PPGH-UFF) e mestrando em Sociologia (PPGSA/IFCS-UFRJ); E-mail: [email protected]; Instagram @_jaumgomes.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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