História desenterrada

Arqueólogos encontram no Instituto dos Pretos Novos, no Rio, o primeiro esqueleto íntegro de uma africana recém-chegada ao Brasil

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo 

Flavia Oliveira, colunista. – Marcelo Carnaval / Agência O Globo

Josefina Bakhita é o nome de uma africana nascida no Sudão em 1869, raptada e escravizada, convertida ao catolicismo em 1890 na Itália, morta em 1947, canonizada pelo Papa João Paulo II no ano 2000. É tida como a primeira santa africana, padroeira do país onde nasceu, protetora dos sequestrados e dos escravizados. Desde meados de maio, batiza também o esqueleto de uma jovem mulher encontrado num dos poços de observação do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos (IPN). Foi a primeira descoberta de restos mortais íntegros na área onde foram depositados corpos de homens e mulheres da África que não sobreviveram para serem vendidos nos mercados de escravos do Rio de Janeiro. Tem valor arqueológico inestimável.

Arqueóloga trabalha na escavação do esqueleto: achado de valor inestimável – Marco Antonio Teobaldo

“Bakhita se torna o ponto de partida da arqueologia da diáspora africana no mundo”, diz sem modéstia o arqueólogo Reinaldo Tavares, do Museu Nacional, responsável pelas escavações. A equipe conta com outro arqueólogo, Nelson Mendonça, e duas bioarqueólogas, Andrea Lessa e Claudia Rodrigues Carvalho. Planeta afora, há inúmeros cemitérios de escravos. Nenhum deles tem a importância do Cemitério dos Pretos Novos, em razão da certeza de herança genética africana. A área foi concebida para abrigar corpos de africanos recém-chegados. “É ali, na região do Porto do Rio, que África e América se encontram. Estão ali as pessoas que escaparam da escravidão pela morte”, completa.

O sítio arqueológico que deu origem ao IPN foi descoberto em 1996, durante obra numa das casas de Merced Guimarães, diretora do instituto. Os operários encontraram pedaços de ossos humanos no entulho; pesquisas e testes confirmaram que ficava ali o cemitério dos africanos recém-chegados. A sucessão de intervenções urbanas na região ao longo dos séculos perturbou o sítio. A fragmentação dos restos mortais encontrados é explicada pela própria constituição do cemitério. Na segunda metade do século XVII, com o tráfico de escravizados ainda incipiente, as covas eram individuais. À medida que o fluxo se intensificou, na virada do século XIX, a área se transformou em depósito de corpos. Primeiro, enterros múltiplos em espaços aleatórios. Depois, terreno revirado e cadáveres incinerados para aplacar o mau cheiro das partes ainda em decomposição.

A escavação que chegou a Bakhita começou na virada do ano e foi a primeira cientificamente ordenada. Em seis meses, os pesquisadores chegaram a 1,30 metro de profundidade numa área de três metros quadrados. Em vez de picaretas e pás, usaram palitos de churrasco, pincéis e espátulas de madeira. A intenção sempre foi alcançar as camadas iniciais do sítio, onde provavelmente haveria esqueletos íntegros. A surpresa foi encontrar uma mulher, uma vez que eram homens 90% dos africanos trazidos para o Brasil – predominantemente, adolescentes e jovens.

Bakhita tem idade estimada entre 20 e 25 anos; dentes e pélvis sugerem. Ganhou o nome da santa africana porque o técnico que a identificou é católico praticante. Na arqueologia, quem descobre batiza. Exames físicos vão revelar a região de onde veio, do que se alimentava. “Seremos capazes de contar a história individual, algo que ainda era possível até aqui”, diz Tavares.

A descoberta do primeiro esqueleto chega no momento mais difícil da história do IPN. No início do ano, sem dinheiro e sem patrocínio, o instituto quase fechou as portas. Sem apoio oficial, as escavações que chegaram a Bakhita foram financiadas com recursos dos próprios pesquisadores. Por isso, a despeito do alto valor científico e histórico, uma carga simbólica poderosa cerca a descoberta. “Bakhita ter aparecido nessa fase tão dura, para mim, parece um recado. São esses homens e mulheres dizendo: ‘Não me deixem aqui’. Bakhita é um testemunho inegável do crime contra a Humanidade que foi a escravidão”.

É uma história que se recusa a ser enterrada novamente.

 

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