Indígenas e gays: jovens contam como é ser LGBT dentro e fora das aldeias

Grupo se reúne na UnB para debater o tema; noção de pecado foi ‘herança das igrejas’, dizem. Nas aldeias, ser homossexual implica mudança em papel social.

Por Marília Marques, do G1

Danilo Ferreira, da etnia Tupinikim, no Espírito Santo, vive há 8 meses em Brasília — Foto: Marília Marques/G1

Aos 19 anos, Danilo Ferreira deixou a família na aldeia de 3 mil habitantes – no interior do Espírito Santo – para viver e estudar em Brasília. Na capital há oito meses, o jovem da etnia Tupinikim diz que as mudanças não foram só geográficas, mas de “descobertas e aprendizados sobre si mesmo”.

Além de indígena, Danilo é homossexual assumido e ativista LGBT. Uma vez por semana, ele se reúne com outros estudantes com o mesmo perfil, na Universidade de Brasília (UnB), para falar sobre identidade e sexualidade – e como atualizar esses conceitos nas próprias aldeias.

Danilo diz que os primeiros questionamentos sobre a própria afetividade vieram ainda na infância. Para Danilo, os papeis sociais cumpridos nas aldeias indígenas influenciaram positivamente na formação de homens e mulheres mas, atualmente, estão “carregados de preconceito”.

“Até então, achava que eu era o único gay do mundo”, lembra, sorrindo. “Na aldeia eu não tinha referências, a única coisa que eu tinha era contato com o preconceito diário”.

“Aí, descobri que eu posso ser do jeito que eu quero, que não estou errado. Que o preconceito era uma questão de colonização machista e homofóbica que meu povo sofreu.”

Danilo Ferreira, de 19 anos, é do povo Tupinikim, no Espírito Santo, mas mora em Brasília — Foto: Marília Marques/G1

Estudo de gênero
Ainda em Brasília, distante da maioria dessas comunidades, a antropóloga Braulina Aurora, da etnia Baniwa, compartilha da mesma visão do jovem Tupinikim. Para a pesquisadora indígena, a ideia de pecado nas relações homoafetivas é “herança das igrejas”.

“Quem ditou regras de sexualidade foi a igreja. As práticas sempre existiram entre os indígenas”, afirma.

Há quase dois anos, Braulina desenvolve uma pesquisa na Universidade de Brasília (UnB) para entender como a sociedade indígena considera, como um todo, a orientação de homens e mulheres que se assumem homossexuais.

“Em algumas etnias, eles [LGBTs] são considerados como pessoas estéreis, que não podem gerar filhos”, explica.

“Na época da minha avó, nas aldeias, quando a mulher se recusava a casar, a família passava a responsabilidade dela para outro parente e, assim, ela se tornava a tia que não podia ter filhos”.

 

Braulina Aurora, da etnia Damiwa, estuda definições de gênero no meio indígena — Foto: Marília Marques/G1

Para a antropóloga indígena, o entendimento da própria identidade está intimamente ligado ao respeito que a comunidade – principalmente os “mais velhos da aldeia” – têm com a situação.

“Nosso maior desafio, hoje, é fazer com que eles entendam que não é doença, é apenas a sexualidade”.

Debate e orientação
Nas rodas de conversas semanais, o grupo conta que a pauta tem sido “bem aceita” em algumas aldeias indígenas. Em cada local, a homossexualidade é vista de uma forma – o entendimento varia do “natural” ao “tabu”.

“Ainda é muito difícil para as mães aceitarem. Normalmente o índio sai de casa, porque ainda é um choque descobrir que sua filha está gostando de outra mulher, apesar de os mais velhos saberem que isso sempre existiu”, diz Braulina.

Índios Waura no Parque Nacional do Xingu, no MT — Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Aceitação
Na aldeia do jovem Samuel Guajajara, de 20 anos, a sexualidade não é um assunto que costuma ser debatido entre os indígenas da comunidade, no interior do Maranhão. Ainda assim, ele considera que as pessoas de lá são “mais abertas às relações homoafetivas”.

O estudante diz que sempre teve clareza sobre a própria sexualidade, e lembra que não foi difícil entender quem era – “mas minha realidade não se aplica a de todos”, pondera.

Na convivência entre os familiares, ele diz que as tradições indígenas mais originárias – como a “naturalização da nudez, do corpo e da sexualidade” – se perderam com o tempo, mas “nunca foram demonizadas, como em outras culturas”.

“Perdemos muito com as chegadas das igrejas. O relacionamento com pessoas do mesmo sexo foi sendo silenciado por quem disse que era errado.”

Samuel Guajajara fala ao G1 como a homossexualidade é vista na aldeia onde cresceu — Foto: Marília Marques/G1

Para o jovem estudante de pedagogia em Brasília, o tema – apesar de bem aceito na aldeia onde passou boa parte da vida – não implica o mesmo entendimento entre outras etnias.

“Cada pessoa tem uma vivência diferente, independentemente de sermos indígenas”.

Na academia…
Apesar de pouco discutidas no meio acadêmico, questões envolvendo a sexualidade indígena foram tema da tese do doutorado do antropólogo Estevão Rafael Fernandes, em 2015.

Na Universidade de Brasília, o pesquisador defendeu que “boa parte dos povos indígenas não tinham, no passado, a homossexualidade como tabu” – a exemplo dos povos Tupinambás.

“A literatura traz longos relatos sobre indígenas que, em 1530, eram chamados pelos jesuítas de sodomitas”, explica.

Apesar disso, segundo o professor, não há registro histórico de indígenas que tenham matado integrantes de suas aldeias em razão do que, hoje, se entende por orientação sexual.

Para o antropólogo que trabalha com povos indígenas desde 1999, foi no dia a dia que os grupos “acabaram incorporando preconceitos contra as relações homodesejantes”.

Os motivos para o início do conflito, afirma, surgiram “por meio de personagens caricatos, ou por religiosos que passaram a dizer que aquilo é errado”.

Já em comunidades mais isoladas – no Brasil ou na América do Norte –, Fernandes afirma que alguns indivíduos em aldeias têm até oito papeis de gêneros diferentes e, entre eles, “não há qualquer tipo de preconceito”.

“Se a pessoa desenvolve bem o papel social dela, caça, é bom pai de família, é o que interessa”, diz.

“A sociedade indígena é a representação do que seria nossa sociedade sem a homofobia: o que importa é o caráter”.

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