Discursos, narrativas, formas e estratégias de identificar e, principalmente, combater e superar o racismo nas instituições jurídicas, científicas, literárias e artísticas da sociedade foram pauta do debate realizado na tarde de ontem, dia 21, no auditório da sede do Ministério Público estadual, em Nazaré. As discussões abordaram questões do racismo no ordenamento jurídico, no meio acadêmico, no musical e no mercado editorial.
Por George Brito Do MP
Para o advogado e professor da Ufba Samuel Vida, o “racismo no Direito é um das problemáticas mais difíceis do processo de enfrentamento”. Ele demarcou, sinteticamente, três fases da relação entre Direito e racismo – legitimação do racismo pelo Direito (escravidão), criminalização do racismo (Constituição de 1988) e instituição das políticas de reparação, a partir dos anos 90. Ele acredita que urge a necessidade de um quarto momento, que desloque o esforço de criminalização e de reparação, importantes mas já insuficientes, para uma “revisão do ordenamento jurídico, que não trate do racismo de forma pontual, mas considere estruturas e instituições”. Segundo o professor, o Direito e o Sistema de Justiça brasileiros são implicitamente racistas nas suas matrizes teóricas, operacionais e institucionais. “Na Bahia, continuamos dependendo fundamentalmente da corajosa atuação do MP”, disse. O professor defende que seja realizada uma profunda reorientação epistemológica, hermenêutica e normativa, que torne realmente efetivas as prerrogativas presentes na Constituição Federal de combate ao racismo no Brasil, o que implica sair do confinamento do Direito Penal a partir de mais construção e aplicação de medidas reparativas e promotoras da igualdade racial.
A socióloga e ouvidora da Defensoria Pública do Estado da Bahia Vilma Reis considerou o evento de comemoração aos 20 anos da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo como mais um exemplo importante da luta histórica da população negra por espaços e direitos na sociedade. “Nossa presença é pedagógica. Estamos o tempo todo disputando narrativas. O debate sobre acesso à Justiça passa por isso, por abrir as instituições”, afirmou. Ela abordou o tema gênero, raça e os desafios no acesso à Justiça. Com referência a intelectuais negras importantes, como a antropóloga Lélia Gonzalez e a escritora Carolina Maria de Jesus, a também professora apontou mudanças históricas como o ingresso dos negros nas universidades e a criação de ouvidorias externas em órgãos do Sistema de Justiça. “A presença de negros nas universidades é irreversível. E precisamos pensar, o MP e o TJ, na criação de ouvidorias externas voltadas à sociedade civil”, afirmou.
A advogada Gabriela Ramos, vice-presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-BA, falou sobre racismo no meio acadêmico. Ela apontou que, embora seja uma conquista histórica muito valiosa, o acesso de negros e negras às universidades se restringe exclusivamente à reserva de vagas, sem enfrentar as dificuldades do “trânsito” dos estudantes negros no meio universitário, que colocam barreiras para a continuidade dos estudos e ingresso em níveis acadêmicos mais elevados, como programas de iniciação científica e pós-graduação. “Enfrentamos a invibilização de nossa produção científica e deslegitimação da pouca produção que conseguimos publicar”, afirmou a advogada ao alertar que a academia não pode ser considerada como único e exclusivo espaço de produção do conhecimento.
Foi esta crítica que norteou a fala do maestro, músico e compositor Letieres Leite ao tratar sobre a relação entre racismo, academia e música. Pesquisador do tema há cerca de 30 anos, Letieres Leite disse que sua pesquisa “desmistifica a crença de que a música negra não tem rigor, método, nem uma estrutura científica na sua execução, transmissão e educação”. O maestro apontou que é equivocado e racista acreditar e defender que a música negra é desorganizada pelo fato dela ser baseada na oralidade e não se encaixar nas partituras ou esquemas explicativos da música branca da Europa. “As bases da música europeia não servem para explicar a música de matrizes africanas. As partituras não conseguem resolver a musicalidade negra”, afirmou. Ele defende que é preciso se apoderar da escrita, não como fim, mas como ferramenta, para sistematizar a música negra, tal já acontece “em alguns lugares do mundo”.
A cantora Nara Couto falou das dificuldades de construir uma carreira como artista negra na Bahia e no Brasil. “Fiz, com algumas indicações, uma lista de 38 cantoras negras brasileiras. Sei que têm muito mais. Mas destas, apenas três são conhecidas pelas pessoas, têm reconhecimento, e apenas uma nacionalmente. Meus shows não lotam. Sou produtora também, porque não há produtores musicais negros, nem brancos também, que produzam cantoras negras”, afirmou. Já o poeta Marcos Guellwaar, editor do selo Ogum’s Toques Negros, abordou o tema do racismo editorial. Ele citou exemplos de feiras internacionais de livros em que a indicação de autores pelo governo brasileiro foi majoritariamente de escritores brancos. “O racismo no mercado editorial, diferente do que acontece na sociedade em geral, não é muito mutável. Ele sempre foi e ainda é ‘corta-cabeças’ mesmo”, disse. O poeta fez algumas provocações ao público para demarcar como opera o racismo no setor: “Quantos livros de autores negros você leu este ano? Quantos livros você tem na sua estante de autores negros ou autoras negras? Das editoras que estão na sua estante, quais são negras?”.
As palestras e o debate foram mediados pela promotora de Justiça Lívia Vaz e pela cantora e fundadora da banda Didá, Viviam Caroline. Houve também apresentações da cantora Nara Couto e de Adriane Silva, Fabrícia Lima e Jaqueline Nascimento, do ‘Slam das Minas’ na Bahia, batalhas de poesias realizadas por mulheres negras das periferias das capitais brasileiras, cujo objetivo é combater o racismo e a misoginia.