Representante da quarta geração de uma família candomblecista, a estudante Alice Oliveira optou por não usar vestimentas totalmente brancas às sextas-feiras — na tradição do Candomblé, o dia é consagrado a Oxalá, o orixá da criação, ao qual é associada a cor branca — nem sair de casa vestida com “roupas de santo” para visitar outros terreiros, por medo de sofrer algum tipo de ataque nas ruas. Apesar do orgulho da religião que pratica, a jovem diz que teme a exposição devido aos relatos de intolerância e violência que sempre ouviu.
— Dá mais trabalho, mas sempre prefiro chegar de roupa normal e trocar no local do que andar na rua. Normalmente não posto muita foto em rede social também, evito exposições que possam gerar comentários maldosos e ofensivos — conta.
O temor de Alice não é infundado. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, em 2021, o estado do Rio registrou aumento de 11,7% nos casos gerais de intolerância religiosa em relação a 2020. No ano passado, foram 1.564 ocorrências, contra 1.400 nos 12 meses anteriores. Nestes números, estão incluídos os episódio de“injúria por preconceito” — ato de discriminar um indivíduo em razão da raça, cor, etnia, religião ou origem — e “preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional” — quando há inferiorização de todo um grupo étnico-racial e atinge a dignidade humana.
Os casos de “ultraje a culto religioso”, quando há ridicularização pública, impedimento ou perturbação de cerimônias religiosas, também aumentaram, passando de 23 em 2020 para 33 em 2021.
Embora este crime seja cometido contra praticantes de todas as religiões, dados do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap) mostram que a maior parte é dirigida a religiosos de matriz africana, com maior concentração de ocorrências na Região Metropolitana do Rio.
Líder religioso na mira
Em 2021, 47 casos de intolerância religiosa foram registrados ou informados à Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR). Destes, 43 foram sofridos por adeptos das religiões de matriz africana, sendo 16 na capital. Em aproximadamente 23% dos episódios, o autor da ação foi um vizinho. Nos casos em que foi possível identificar a religião dos autores, 56% eram evangélicos.
— A intolerância religiosa não tem a ver com atitude religiosa. É um crime que causa muita dor nos adeptos das religião de matriz africana e de outras religiões também, no âmbito emocional e na insegurança que passa a se estabelecer — explica o professor e babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.
Na última quarta-feira, a Assembleia Legislativa do Rio aprovou o relatório final da CPI instaurada para apurar os crimes de intolerância religiosa praticados no estado. Entre as recomendações, está o pedido para que a Polícia Civil e o Ministério Público incluam na investigação ou na denúncia o líder religioso quando houver indícios de sua participação como mentor ou coautor do crime.
Além disso, o texto sugere que pessoas que perderam suas moradias por conta deste crime sejam incluídas no programa Aluguel Social e propõe a implementação de projetos educacionais nas escolas da rede estadual, para conscientização e combate ao preconceito religioso.
Há ainda a recomendação para que o ISP divulgue, anualmente, informações relativas à intolerância religiosa e ao racismo religioso, de modo que se produza dados que possam servir de subsídio para a criação de políticas públicas de segurança.
Já no município do Rio, as coordenadorias executivas de Diversidade Religiosa e de Promoção da Igualdade Racial da prefeitura lançaram a “Cartilha Rio de Combate à Intolerância Religiosa” para orientar a população sobre a história da pluralidade de crenças da cidade e sobre atitudes a tomar em casos de preconceito religioso.
O documento ainda orienta as vítimas a denunciar os casos de intolerância pelo número 1746 — inaugurado há um mês, o serviço já recebeu dez denúncias até o início desta semana — ou procurar a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), que funciona desde 2018 no Centro.
Foi ao Decradi, aliás, que o pai de santo Pedro Paulo Chagas, conhecido como Pedro de Sogbo, registrou um caso de intolerância no Cemitério de Inhaúma, onde sofreu tentativa de impedimento da realização de um ritual fúnebre para um filho de santo.
— Toda a movimentação que estou fazendo é para proteger a minoria e dar voz a quem não tem. Eu fui intolerado, mas busquei os mecanismos de defesa e consegui fazer meu ritual. Mas quantas pessoas conseguem fazer? — indaga . — Eu tive o equilíbrio, mesmo em um momento de dor e surpresa, de ligar para a polícia, tentar uma liminar na justiça e ligar para a CCIR.
Intolerância também não é uma novidade para o padre Wanderson José Guedes, da Igreja do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, na Glória. Desde 2019, quando teve uma missa invadida por católicos tradicionalistas, ele sofre ameaças de grupos de fiéis mais radicais, que ainda tentam interromper as celebrações e ações da igreja. Há três anos, a celebração do Dia da Consciência Negra só foi realizada com a presença da PM. De acordo com o pároco, foram ditas frases como “isso aí, padre, cuide de suas ovelhas pretas”.
— A que ponto de intolerância chegamos, em que um padre não pode celebrar uma missa? Também já depredaram presépios duas vezes. Uma, quando fiz sobre corrupção, e outra quando montei sobre racismo — relata. — Não consigo entender como ainda somos intolerantes a certas pautas no século 21. Perdemos a vergonha e o pudor de sermos racistas, misóginos.
Traumas psicológicos
Para a jornalista judia Diane Kuperman, há radicalização e incapacidade de diálogo entre pessoas com maneiras distintas de ver o mundo:
— Perdi a conta do número de vezes que ouvi alguém dizer “isso é coisa de judeu”. O que é coisa de judeu? Eu lamento profundamente que as pessoas não se deem conta, principalmente no Brasil, da diversidade riquíssima de crenças que o nosso país tem.
Independentemente da crença de cada um, a intolerância religiosa tem reflexos em toda a comunidade e, como qualquer outro tipo de violência, gera traumas. É isso que diz a psicóloga Tania Jandira Ferreira, que é umbandista e presta atendimento psicológico social a essas vítimas.
— Os núcleos (de apoio) não atendem da maneira que as vítimas precisam. É necessário atendimento clínico em muitos casos, uma escuta qualificada. Registrar a ocorrência é o mínimo. A parte psicológica das vítimas de intolerância religiosa não tem sido priorizada — alerta.