A Itália e a campanha da xenofobia

A ultradireita italiana, as vésperas das eleições políticas, enxerga na imigração o mal do país

Por Angela Giuffrida, Da Carta Capital 

 

O atentado de Macerata contra os imigrantes provoca o repúdio de uma manifestação de 30 mil pessoas (Fabio Falcioni/Ropi/ZUMA Press/fotoarena)

Pape Diaw, nascido no Senegal, chegou em Florença (centro da Itália) para estudar engenharia no fim dos anos 1970. Parte de um grupo de 15 estudantes africanos, ele causou curiosidade entre seus colegas italianos e na comunidade em geral, mas nunca enfrentou racismo. “Lembro que andava pela rua e as pessoas pediam para tirar fotos”, observou ele.

“Éramos vistos como uma novidade, mas nunca fomos insultados. Quando íamos processar nossas licenças de residência, os policiais nos ofereciam café. Sim, a Itália pode estar atrás (de outros países) no que se refere à mentalidade, mas fomos bem recebidos.”

Outros tempos. Diante das eleições nacionais em 4 de março, o discurso xenofóbico está dominando uma campanha que se tornou ofensiva e divisiva. As coisas assumiram um viés tóxico no início de fevereiro, quando Luca Traini, 26 anos, feriu seis imigrantes africanos em um tiroteio por motivos raciais na cidade de Macerata, no centro do país.

Traini tinha sido candidato nas eleições locais no ano passado, pela Liga Norte, um dos dois partidos anti-imigrantes que formam a coalizão variada liderada pelo Forza Italia, de Silvio Berlusconi. Tanto a Liga como seu aliado menor, Irmãos da Itália, estão em cruzada com a plataforma “Italianos Primeiro”, que ataca os 600 mil imigrantes que chegaram às praias do sul da Itália nos últimos quatro anos, fugindo da guerra, da pobreza e da opressão.

Para os imigrantes mais antigos, a crescente hostilidade em relação aos estrangeiros foi um acontecimento profundamente deprimente depois de anos de integração gradual.

Diaw, que ajuda a integrar imigrantes recém-chegados em nome da Il Cenacolo, uma cooperativa social sediada em Florença, situa a mudança de sentimento sobre os imigrantes em 2007, ano em que a crise financeira se instalou. “Quando os italianos estão bem, quando eles têm dinheiro e trabalho, não se preocupam com os imigrantes. Mas, quando eles sofrem, perdem a cabeça e procuram alguém para culpar.”

A profundidade da crescente animosidade, capaz de atingir níveis tresloucados, ficou clara em dezembro de 2011, quando Gianluca Casseri, um militante do grupo neofascista CasaPound, atirou contra dois mercados centrais em Florença, matando dois vendedores de rua senegaleses e ferindo outros três, antes de voltar a arma contra si mesmo. Um dos sobreviventes está paralisado do pescoço para baixo.

O clima político na época era tão tenso quanto é hoje: o surto de imigrantes provocado pela Primavera Árabe havia começado mais cedo naquele ano, e a Itália estava entre dois governos, depois que Berlusconi foi obrigado a renunciar de seu terceiro mandato como primeiro-ministro, em meio a uma aguda crise da dívida. 

Outros situam a mudança ainda antes. Johanne Affricot, nascida em Roma de mãe haitiana e pai ganense-americano, teve a primeira noção da subcorrente racista em 1994, quando tinha apenas 11 anos. Foi o ano em que Berlusconi assumiu o poder pela primeira vez, em uma coalizão formada pela Liga Norte e a Aliança Nacional, partido que havia surgido do Movimento Social Italiano, pós-fascista. A Aliança Nacional mais tarde tornou-se o Irmãos da Itália.

A ex-ministra Kyenge : “Eles trabalham, pagam impostos…” (Foto: Fabio Falcioni/Ropi/ZUMA Press/fotoarena)

“Na escola, eu era a única pessoa negra na classe, mas não sentia racismo dos colegas”, afirmou ela. “No entanto, lembro que vi o noticiário na tevê e houve uma manifestação organizada pela Liga. Quando um jornalista perguntou às pessoas por que estavam ali, elas disseram que queriam preservar a identidade italiana. Foi um momento que me fez pensar que talvez as coisas fossem um pouco diferentes para mim.”

Affricot é fundadora da Griot, uma revista online em italiano que celebra a cultura africana e a diversidade criativa. Ela disse que o ataque em Macerata a fez sentir medo não só pelos imigrantes, mas pela sociedade italiana como um todo.

“Essa campanha ajudou a promover os partidos de extrema-direita e abriu um precedente que será muito difícil de consertar”, disse ela. “Tenho medo da retaliação contra os imigrantes recentes e também contra os que nasceram ou vivem aqui há anos.”

As redes sociais estão ajudando a ampliar a toxicidade da campanha. Em janeiro, Attilio Fontana, um candidato da Liga a governador da Lombardia, afirmou que o influxo de imigrantes ameaça eliminar “a nossa raça branca”.

Na semana passada, a foto de um passageiro negro em um trem no trajeto Roma-Milão foi postada no Facebook, com a mensagem anexa afirmando que ele embarcou sem passagem. O homem foi acusado de não saber falar italiano e não ter “dinheiro nem bagagem”, embora o autor tenha notado que ele “possui um Samsung S8”.

A postagem circulou rapidamente antes que o condutor se apresentasse para confirmar que o homem tinha uma passagem válida. Diaw e Affricot estão entre os 5 milhões de pessoas de origem estrangeira que têm cidadania italiana ou permissão para residir no país. 

“Eles trabalham, pagam impostos, contribuem para a sociedade… mas nós nunca falamos sobre essas pessoas”, disse Cécile Kyenge, uma deputada do Parlamento Europeu que se mudou da República Democrática do Congo para a Itália, em 1983, para estudar medicina.

“Mas se faz um estardalhaço quando 12 imigrantes se mudam para uma cidade.” Kyenge já teve bananas atiradas contra ela e foi comparada a um orangotango durante seu breve período como ministra da Integração do governo de Enrico Letta, em 2013.

Ela sempre afirmou que a Itália é um país tolerante e que os ataques vêm de um pequeno grupo de pessoas ignorantes. Mas o país hoje é multicultural, disse ela, e deve fazer mais em termos de integração. Sua função foi eliminada quando Matteo Renzi, líder do Partido Democrático, de centro-esquerda, se tornou primeiro-ministro em 2014.

Diaw põe a culpa pelas divisões raciais no governo, em particular nos partidos de esquerda enfraquecidos. “Este é um período muito feio, porque os partidos de esquerda costumavam ser muito fortes, também na luta contra o racismo e a discriminação. Hoje eles estão fracos.”

Mas ele se sente animado pelo modo como 30 mil pessoas foram às ruas de Macerata, no último fim de semana, para marchar contra o fascismo.

“Foi lindo… especialmente ver tantos jovens italianos lá. Só podemos esperar que essas eleições tomem um rumo diferente daquele que nós tememos.”

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