Tiago Leifert está errado. Representatividade importa

Onde estão os negros? Os indígenas? As mulheres? Os gays e lésbicas? Quem nos representa? Quem nos tira da invisibilidade?

Por Pai Rodney , da Carta Capital 

Foto: Reprodução/Globo

“Deixa eu falar a real. Ninguém aqui fora deu procuração para vocês representarem ninguém aí. Sem essa de representatividade, que isso não leva a nada.”

Será mesmo, Tiago Leifert? Deixa eu te perguntar um negócio: em nome de quem você diz isso? Será mesmo que ninguém se identifica com seu discurso, com sua postura, com seu jeito, com sua cor, com sua orientação sexual?

Será que você é o único indivíduo no planeta que não se define como um complexo de relações sociais? Vive isolado, fora da realidade, sem cultura, sem comunicação? Será, Leifert, que você realmente não representa ninguém? Será mesmo que não há nenhum interesse representado nesse seu discurso?

A televisão faz pesquisas, escreve roteiros, faz edições, cria celebridades, angaria patrocinadores, movimenta fortunas para que, se representatividade não leva a nada?

Talvez os interesses da tevê, especialmente dessa na qual Leifert trabalha, se expliquem muito mais pela lógica da opressão do que pela da representatividade. Especialmente hoje, quando bancadas ruralistas e evangélicas ditam a agenda política do País, promovendo um retrocesso sem precedentes.

A reação dos grupos minoritários, sobretudo os historicamente subjugados, tem criado uma espécie de guerra velada, apesar da oposição cada vez mais evidente. Não há armas de fogo, confrontos corporais, xingamentos diretos. As redes sociais transformaram-se em arenas nas quais se digladiam opiniões divergentes, ideologias extremas, crenças diversas.

Uns dizem que o mundo está muito chato e criaram dois neologismos infames pra definir os protestos e reclamações das minorias, principalmente da população negra.

“Vitimismo” e “mimimi” são termos usados pejorativamente para desqualificar o sofrimento, aspirações e reivindicações de determinados grupos. Denúncias gravíssimas, como o assassinato de indígenas por garimpeiros ou o genocídio de jovens negros nas periferias do País inteiro.

Estupros e outras tantas violências contra mulheres, espancamento e morte de homossexuais, tudo isso é minimizado e causa pouca ou nenhuma comoção. Quem se importa? Quem grita por essa gente? Por que essas vidas valem menos?

Sou um homem negro, do candomblé e do samba. Nasci e me criei num bairro pobre, de maioria negra e sempre precisei saber lidar com a discriminação racial. Aprendi a respeitar a malandragem e a ter medo da polícia. Quase abandonei a escola, onde tive uma única professora negra que além de ensinar as matérias da quarta série nos orientava a perceber e enfrentar o racismo, do qual ela mesma era vítima por parte de colegas e alunos.

Assistia televisão e não me via nas novelas nem nos programas infantis. Vez ou outra, uma criança negra na plateia, alguns negros no papel de escravos em novelas de épocas, como empregados domésticos ou marginais. Nunca fomos consumidores de nada, não estávamos nas propagandas de brinquedos, carros, cosméticos nem roupas.

Sempre figurantes, algumas vezes coadjuvantes, mas nunca protagonistas, nem de nossas próprias histórias. A mídia nos ignora e quando tentamos tomar o papel principal execra-nos com uma brutalidade atroz. O Brasil insiste em escamotear seus conflitos e, mais grave, segue oprimindo a grande maioria da população, vitimando os mais pobres, subjugando mulheres, negando direitos a toda e qualquer minoria.

Vivemos sob a falácia de um mito que nos faz crer que nossa luta não tem sentido, que nos nega o direito de organização enquanto povo, que nos condena à invisibilidade.

Não podemos sair do padrão. Nossos corpos devem se adaptar. Nossos cabelos “rebeldes” não podem sobressair. Nosso jeito de ser, vestir, falar, andar, dançar, acreditar, deve ser enquadrado numa lógica restritiva. Nosso nascimento é negado, nossa existência é negada, nosso acesso é negado. Não temos voz nem vez.

Quem nos representa no governo? No Congresso e Assembleias, nas Câmaras municipais? Quem nos representa no Judiciário, nas autarquias e nas polícias? Quem garante nossa cidadania? Quem protege nossas vidas? Onde estamos? Qual o nosso lugar nessa sociedade?

Neste País, a invisibilidade se sobrepõe à noção de representatividade. Sempre quiseram nos invisibilizar, e foram eficientes, mas as coisas mudam e tem muita gente incomodada. É essa gente que Leifert representa.

Mas quem nos representa? As duas últimas misses Brasil são negras. Eleita em 2016, a paranaense Raissa Santana dividiu opiniões com a seguinte declaração: “Não me vejo como representante da beleza negra, me vejo como representante da beleza da mulher”. Quando todos falavam de representatividade negra, Raissa desviou da questão racial e gerou certo mal-estar nos movimentos negros. Mas não é para representar a beleza da mulher brasileira que se escolhe uma Miss Brasil?

Sob esta perspectiva, Raissa tem toda razão. Como diria Frantz Fanon: “Um negro não é um homem, um negro é um homem negro”. Por muito tempo, nossas mulheres ficaram confinadas a concursos específicos, como os de “Miss Beleza Negra”, que têm total relevância, uma vez que os outros espaços não estavam abertos às mulheres negras.

A grande maioria das mulheres brasileiras se reconhece em Raissa Santana, mas há aquelas que contestam o resultado. Goste-se ou não, em 2016 foi uma negra que representou a beleza da mulher brasileira. E foi sucedida por outra negra, a lindíssima Monalysa Alcântara, que segue a inspirar as meninas do Brasil, principalmente as negras, no sonho de ser miss.

Aquele que nos representa está nos dizendo silenciosamente que nós também podemos. Imaginem o impacto de um herói negro na vida de jovens que nunca tiveram seus heróis reconhecidos. Até hoje contestam o Dia da Consciência Negra e o feriado em honra do Herói Nacional Zumbi dos Palmares. Por que será? Será por que Zumbi livra o negro do estigma da submissão?

O sucesso estrondoso de Pantera Negra mostra o quanto queremos nos ver nas telas de cinema como heróis, como protagonistas. Perceber os elementos de nossa cultura retratados num filme, além de nos encher de orgulho, nos permite um transporte imediato para aquela história.

Duvido que alguém  do candomblé não se ache nesse filme. Lá tem Oxóssi, Ogum, Xangô, Ossain, Oyá, Iemanjá, Obá. Lá está uma África gloriosa, livre de colonização. Lá está nossa ancestralidade, nossa representatividade.

O sucesso de Pantera Negra derruba a tese de Leifert (Foto: Reprodução/ Marvel )

Quando um dos nossos rompe a barreira da invisibilidade, torna-se um representante de todos nós. Nossa África ancestral é generosa, solidária, acolhedora. Portanto, é natural que nos vejamos em nossos pares: naquele irmão elevado a uma posição de honra. Naquela irmã que se formou em medicina e atende nossa filha no hospital. Naquela atriz, naquele ator ou cantor.

A mídia é uma vitrine, uma janela que nos mostra para o mundo. Durante muitos anos, o único marketing positivo em relação às religiões de matriz africana era a transmissão dos desfiles das escolas de samba. Sempre havia uma ou mais escolas falando sobre os orixás ou outras questões da negritude, gerando comentários e ensinando a história e a cultura do nosso povo.

Quando uma revista internacional faz, porém, um baile de gala inspirado na África, quando um programa de televisão é apresentado por um negro, quando somos entrevistados ou aparecemos em reportagens de jornais, quando um dos nossos protagoniza uma novela, quando um editorial de moda é inspirado nos orixás, quando um livro com nossas histórias é premiado ou se torna best-seller, tudo vira representatividade, que deve ser festejada, pois se não nos leva a algum lugar, nos retira da invisibilidade à qual o racismo e a opressão nos condenou há mais de século.

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