Jamais fomos modernos

13 de maio. Data tida como histórica da Abolição da escravatura. Abolição de quem?

Por Tulio Custódio Do Huff post Brasil

Sabemos o legado que @s negr@s ainda carregam. Sabemos as desigualdades que ainda perpetuam quando separamos em números (e histórias) o Brasil dos brancos e o Brasil dos negros. Lacuna abissais que transformam o Brasil (país do futuro) em duas realidades completamente diferentes.

Sabemos que a representação d@s negr@s seja em locais de poder, seja nas mídias, ou simplesmente na ficção e nas estórias, ainda é menor, pejorativa, abaixo da linha da dignidade e do respeito.

Sabemos que a luta contra o racismo anti-negro – racismo que “é o arame farpado que dilacera a carne da digna do negro brasileiro” como dizia Abdias do Nascimento – ainda é uma luta em processo que encontra mais revéses e obstáculos, do que aceitação e empatia.

Sabemos (e sentimos) que o racismo – ainda inspirado por Abdias do Nascimento e sua brilhante visão sobre questão racial no Brasil – é um camaleão que sempre se ajusta para reproduzir e se adequar às novas formatações da sociedade. Isso significa, em última instância, que o protesto negro (na multiplicidade de suas frentes, iniciativas,muito sangue e suor) parece estar sempre correndo atrás do prejuízo: quando conseguimos cotas [recadinho: superem, ela existe, deu certo e vai continuar crescendo] nas federais, algumas estaduais (como aquela que é símbolo do que seria o “melhor da educação superior brasileira”) resistem. Quando conseguimos entrar na universidade, parece que não é o melhor caminho “pois estamos alimentando a rivalidade racial”, ou “não estamos entrando por nosso próprio “””mérito””'(muitas aspas nesse termo que sempre me faz espirrar), mesmo diante de uma realidade na qual mercado exige diplomas. Quando temos um diploma de ensino superior, parece não ser suficiente, pois aí se exige língua estrangeira, e experiência de viagens internacionais.

Racismo muda conforme a música, e, não nos enganemos, também pauta o DJ.

Porém o que gostaria de chamar atenção para dia 13 de maio é o valor simbólico da ideia de “libertação”. Ao ser libertado, @ negr@ sairia da condição de Coisa para entregar como Humano a plataforma da sociedade e ser Ser Humano livre e digno de direitos e deveres. Parece estranho mas sim: há apenas 127 anos nós negr@s temos estatuto social e jurídico de pessoas. Sim, não estou falando de poder votar, ou ter carteira de habilitação ou ter CPF. Estou falando de ser GENTE! Juridicamente, falando – e sim, isso conta muito em uma sociedade regulada por leis.

A libertação, ao conduzir @ negr@ para lugar de um ser pleno de direitos e deveres, deveria ter corroborado para ideia de que @ negr@ estaria plenamente inserid@ na modernidade, como indivíduo pleno fundamentado nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. E o que temos?

Liberdade. Não temos. a partir do momento que uma sociedade carrega o legado de ter sua estrutura cultural, social, econômica e simbólica baseado em uma desigualdade estabelecida e legitimada pela herança escravocrata, não somos livres para seguir nosso lugar. A partir do momento em que representações externas a nós se impõem e determinam toda uma visão e imaginário social (mulher negra como objeto sexual ou força de trabalho e subserviência; homem negro como potencial perigo social, marginal e bandido, entre outros), não há liberdade. Quando fazemos a analogia do buffet de pratos do que a Liberdade representa para constituição do indivíduo moderno, a mesa do negro possui pratos que ele não pode se servir, seja porque não está “incluso no pacote”, seja porque “ah, negro não gosta disso”. Não há liberdade.

Igualdade. Certa vez escrevi sobre conceito de “igualidades”, que é uma etérea noção de que todos somos iguais, humanos, e a luta teria que ser pelo ser humano total e não por raça, gênero o que seja. Bem, a igualdade se esvai aí, no momento em que é negado ao indivíduo o exercício de sua denúncia e crítica sobre o estado ao qual está vivendo, as discriminações que está passando, e os processos de desigualdade estabelecidos baseados em uma naturalização negativa das diferenças que o compõem. O que significa? Não há igualdade quando pela cor da pele minha alguém decide se devo ou não ser parado pela polícia. Não há igualdade quando pela textura do meu cabelo sou chamado ou não de “cabelo ruim”. Não há igualdade quando minha pele negra é chamada de exótica, e a cor branca é chamada de “natural”. Não há igualdade quando se estabelece uma nota de corte (se baseando em outra noção etérea, a meritocracia) que privilegia uma parte do estrato social elitizado, e exclui maior contingente da sociedade, culpabilizando o mesmo por seu estado de degradação e marginalidade. Não há igualdade.

Fraternidade. Bom, esse, na minha visão é um problema que nenhum dos indivíduos modernos estão conseguindo atingir e trabalhar. Porque envolve empatia, conexão com outro. No atual mundo no qual as pessoas não conseguem exercer sua condição plena de indivíduos em especial porque se pautam apenas em noções limitadas do que seria liberdade e igualdade, a fraternidade se torna pedra de toque quase inalcancável (mas não impossível) para efetivação do indivíduo moderno. Fraternidade, nessas condições para negr@, não existe. Não há fraternidade quando setores da sociedade, dito progressistas, em nome da “igualidade” negam a voz de protesto d@ negr@, e tentam ditar qual é a pauta que el@s deveriam tratar. Não há fraternidade quando a voz d@ negr@ é silenciada em todos os espaços, e seu protagonismo é negado ou sequestrado em prol de interesses de reprodução do status quo. Não há fraternidade quando dizemos que @ negr@ se encontra na situação que está porque teve azar ou não se esforçou o suficiente. Não há fraternidade.

Meu ponto sobre 13 de maio, portanto, é que ele não seja lembrado apenas como dia da Mentira, ou da falsa abolição. Mas também como dia da não-modenridade d@ negr@, ou o dia da negação-da-modenidade d@ negr@. Modernidade essa que, em seus princípios, é essencial para que efetivamente sejamos livres, iguais e fratern@s.

Por enquanto, desde 13 de maio de 1888, jamais fomos modern@s. Por enquanto.

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