Jessye Norman, uma das maiores sopranos do mundo Cantora lírica vem ao Brasil

Cantora lírica vem ao Brasil e garante que a única regra para um artista deve ser sua sensibilidade

Sim, depois de dois cancelamentos nos últimos anos, a soprano Jessye Norman está enfim no Brasil; e, sim, nada de ópera nos programas dos recitais que ela fará por aqui: no lugar, jazz, spirituals e canções americanas. Se a divisa que separa o popular do erudito é cada vez mais difícil de precisar, não diminuiu a presença de guardas de fronteira raivosos, prontos para enquadrar artistas que se aventuram a fazer a travessia. Com eles, porém, Norman não parece preocupada. “Se uma canção fala ao meu coração, então lembro o que Duke Ellington teria dito: só há dois tipos de música, a boa e a ruim”, diz.

Cantora fala sobre sua vinda ao País e seu disco ‘Roots’, com clássicos da música americana

Fenômeno do canto lírico internacional a partir dos anos 70, Norman chegou ao Brasil na quarta-feira e foi de São Paulo a Salvador, onde se apresentaria na noite de ontem; terça, canta no Municipal do Rio; na sexta, no Teatro Bradesco, em São Paulo; e, no dia 24, encerra a turnê no Teatro Municipal de Paulínia. Traz com ela o pianista Mark Markham e parte do repertório do novo disco, Roots (Sony). Gravado em Berlim, ele é uma espécie de recapitulação afetiva de sua trajetória – e da música que a influenciou, dos spirituals ao jazz, passando pelo teatro musical americano.

“É importante para um intérprete a capacidade de retirar de diversas fontes sua inspiração”, diz ela ao Estado. “A vida de um músico significa aprendizado constante, exploração, expansão e desenvolvimento. Nesse sentido, Roots é um exemplo de como a música e os músicos que fizeram parte da trilha sonora de minha vida desde sempre me ajudaram a expandir minha própria visão artística.”

Ao longo dos dois discos que compõem o álbum, ela interpreta melodias tradicionais que serviram de base aos spirituals e obras de Vernon Ducke, Kurt Weill, Leonard Bernstein, Thelonious Monk, Duke Ellington – com uma rápida parada nos franceses Francis Poulenc e Georges Bizet. Ela explica a mistura. “A música europeia foi o foco no começo da minha carreira e agora posso compartilhar com o público algo que, para mim, foi anterior, a música que está na fundação do que sou. As obras do disco são tão antigas quanto as almas que as criaram, das batidas de percussão da África ao Upper West Side de Nova York, e tudo o que há entre eles. São influências que, não há dúvida, definiram a cantora que sou hoje. E prestar essa homenagem é algo que me parece sempre bastante natural.”

Norman nasceu em Augusta, Geórgia, nos anos 40, em uma família de músicos amadores. Começou a estudar piano mas, ao ouvir as gravações da contralto Marian Anderson, resolveu seguir pelo mesmo caminho. Marian virou ícone nos Estados Unidos. Primeira soprano negra a cantar no Metropolitan Opera, foi proibida de cantar em um concerto promovido pelas Filhas da Revolução Americana. Ao saber da notícia, a primeira-dama Eleanor Roosevelt deixou a associação – e ajudou na promoção de um concerto da cantora no Lincoln Memorial, acompanhado por cerca de 75 mil pessoas. “Não há um dia em que eu não reconheça a influência que essas cantoras tiveram na minha vida”, diz Norman. Além de Anderson, ela lembra de Ella Fitzgerald, Nina Simone, Lena Horne. “Não se trata apenas da importância musical, mas, também, dos exemplos de vida. Elas são monumentos à luta das mulheres, no que têm de mais maravilhoso. São ícones e guias, sempre.”

Da Geórgia, Norman mudou-se para Washington. No começo dos anos 70, partiu para a Europa, onde abocanhou prêmios e aos poucos começou a frequentar os elencos de produções em teatros na Alemanha. Gravações ao vivo dessa época a colocam em palcos como as óperas de Berlim e Viena, interpretando Mozart, Verdi e Wagner. Nos anos seguinte, no entanto, sua carreira iria em direção diferente. O repertório de canções – os lieder alemães e as mélodies francesas – ganharia importância cada vez maior. Na ópera, fugiu um pouco do repertório mais tradicional, optando pelos barrocos e os contemporâneos, com paradas em obras românticas então fora do mainstream, como Les Troyens, de Berlioz. No palco, as únicas presenças constantes seriam Wagner e Strauss. Não é por acaso – o volume excepcional, a facilidade em transitar por todos os registros do agudo aos graves, de fortes coloridos, tudo isso a levou a interpretações de referência de óperas como A Valquíria, Ariadne auf Naxos ou Salomé, da qual fez registros tanto em CD como DVD – de Tristão e Isolda, gravou apenas a cena final, em concertos com Herbert Von Karajan.

“Foi uma descoberta que fiz bastante cedo em minha vida”, diz Norman. “Meu repertório só podia se pautar por um princípio. A pergunta que me faço é: posso falar das profundezas do meu ser com essa canção, com esse papel? A diversidade não é uma questão em si. O fato de que canto de Monteverdi a Stravinsky a Judith Weir só prova, para mim, a recompensa que é para o artista ter um repertório tão vasto à sua disposição.”

As canções americanas sempre tiveram espaço em seus discos e recitais. Grande intérprete dos cancioneiros germânico e francês, ela ajudou a desmarginalizar a música de seu país. “Hoje está claro que as canções da América não são menos importantes que o cânone europeu e é, sim, meu objetivo demonstrar com meu trabalho que canções de Gershwin ou Ellington, Bernstein e Rodgers & Hammerstein não precisam se envergonhar perante a música europeia do passado ou do presente.” Ela volta a citar Ellington. “Acredito completamente nisso, música só é boa ou ruim. E parte dessa boa música foi composta por pessoas como Irving Berlin, parte por gente como Beethoven.”

Diálogos. Transitando por múltiplos repertórios, como ela vê os diálogos possíveis entre eles? As canções europeias, por exemplo, têm uma certa espontaneidade em sua essência. Trabalhar a música popular a ajudou nesse sentido – e vice-versa? “É preciso cuidado para não usar o termo popular de maneira equivocada. A música de Bernstein, por exemplo. Vem da tradição do teatro americano, mas não é pop, de maneira alguma.” O que vale, diz Norman, é a sofisticação da escrita – é isso que contribui à formação do artista e permite a ele fazer algo de novo com determinada música. “O foco está no artista como um todo e na maneira como as influências formam quem ele é. Uma pessoa pode ser influenciada por um grande atleta ou uma etérea linha melódica de Strauss.”

Jessye Norman.Teatro Bradesco. R. Turiaçu, 2.100, 3670-4100. 6ª (22), 21h. R$ 60 a R$ 400. Theatro Municipal de Paulínia. Av. Prefeito José Lozano de Araujo, 1.551, (19) 3933-2140. Dia 24, 20h, R$ 100 a R$ 300. Ingressos para os dois concertos: 4003-1212 ou www.ingressorapido.com.br.

Fonte: Estadão

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