Jout Jout, Clarice e o feminismo branco

Já falamos aqui sobre a questão do feminismo branco. E é importante salientar que reconhecemos, sim, a importância de ações feministas midiáticas devido à influência que elas têm na vida de meninas que estão descobrindo o feminismo, estão tendo seu primeiro contato e questionamentos em relação à questão de gênero. Tanto que, em resposta a publicações rechaçando o “feminismo Jout Jout” e lembrando que não se posicionar é, também, um direito, Camila Ximenes, uma das criadoras do Coletivo CHUTE, escreveu:

Vamos lá gente, não vale a pena a gente diminuir publicamente uma mulher que contribui para a nossa causa, independente dela não viver a causa como nós vivemos. Essa mina já empoderou muita mulher que viveu relacionamento abusivo ou que caiu no conto da paixonite platônica ou tantas outras coisas… Mas ela fala disso tudo pela vivência DELA e nunca via movimento feminista. A mina não vive isso. E ela não copiou nada que veio do movimento.. minha gente, isso tudo é ÓBVIO, mas são coisas que o opressor camuflou na nossa vidinha.

Ainda assim, se queremos e prezamos por um feminismo mais inclusivo e empático, um questionamento se faz necessário. Por que a visibilidade de umas vem em detrimento de outras?

Por Gabriela Moura, no Fida Diria

Hoje vou pegar a ideia da Camila Ximenes e levantar um questionamento/”desabafo” sobre o vídeo da Clarice Falcão, Fã-clubes e a recente notícia sobre o aumento de 54% no número de mortes de mulheres negras, número relacionado diretamente à falta de assistência do Estado às periferias. Hoje mais cedo, fiz um post com uma fala de Sueli Feliziani, mulher negra, militante, mãe de um adolescente, periférica, pesquisadora das áreas de Letras, História Negra e Politica Social:

Sim, moça branca do batom na cara, You are a survivor porque não é você que tá morrendo. O número de feminicídios entre vocês diminuiu 10% e entre nós aumentou 54%.

Os primeiros comentários do post foram de moças loiras explicando que Clarice foi, sim, inclusiva, usou até mulheres negras e gordas no vídeo e que (a velha frase) “uma coisa não exclui a outra”. Precisou vir uma moça branca e dizer o seguinte:

Olha, o vídeo é bonitinho e tal, mas não entendi o objetivo. A música é de mulheres negras, quem canta é a Clarice e o dinheiro vai pra meninas brancas também (que vão fazer o que com ele? Se for pra trabalhar com mulheres pobres e negras, ótimo. Se for fazer mais vídeo parecido, péssimo)

O problema é que esses vídeos são meio feminismo Emma Watson – sim, sim, o batom vermelho, os estereótipos, tudo isso faz parte. Mas não é de longe o mais importante do movimento feminista. E vídeos assim facilitam pra pessoas e a mídia ficarem falando ‘olha como as mina está se aceitando, feminismo tá evoluindo’. Quando não está, porque as estatísticas de violência só aumentam, as leis do Cunha continuam sendo aprovadas. É tudo muito doce e bonito mas a gente passou disso – precisamos de ações concretas, que sejam focadas, sim, nas mulheres que realmente precisam: negras, trans, pobres, lésbicas.

Notem com quem a mídia quer falar de feminismo – Jout Jout, Clarice, minas brancas que não machucam ninguém. Sobre as mulheres negras eles não querem, porque isso não é “bonito”, não é comercial. E a gente – falo como mulher branca – só ajuda quando da foco pra iniciativas como a da Clarice, que são bonitas mas superficiais. Faz parecer que esse tipo de ação é necessária, quando tem mulher negra morrendo por aí.

Não estamos juntas nessa luta – a luta delas é muito maior, muito mais constante e nunca vamos entender o quanto. Nosso dever é apoiar e levar o foco a elas porque são elas que mais precisam do feminismo – a libertação delas que é urgente e necessária. E se tem mulher negra falando que o vídeo incomodou, o mínimo que a gente pode fazer é entender que é um problema então, porque não estamos em posição de entender e criticar a vivência delas.

Eu preciso sempre explicar que minha crítica não é à artista em si – assim como minhas críticas nunca se voltaram para a Jout Jout -, porque eu não espero que Clarice, moça rica carioca, que conseguiu seu primeiro emprego na Globo Produções graças aos pais, que já trabalhavam nos núcleos de roteiro, entenda a vida de mulheres negras da periferia. E, sinceramente, a desconstrução dela não me concerne, pois o mundo dela é outro e eu tenho questões mais urgentes para resolver. Mas “uma coisa não exclui a outra” is the new “somos todos humanos”(falas de racista), ou “somos todas mulheres” (falas de radfem).

Leia Também: Sou mulher. Suburbana. Mas ainda tô na vantagem: sou branca

Precisou vir uma moça branca e repetir o que eu disse pra TALVEZ eu ser levada a sério. Isso não lhes remete a nada? Me lembrou muito o fato de homens que só são atenção ao feminismo quando é o Duvivier que solta texto fofinho.

Invocaram a interseccionalidade para o bem de Clarice, e em momento algum pararam pra me perguntar o porquê de eu problematizar o vídeo. A razão: não vi o vídeo sendo usado como ponto de partida para reflexão, apenas como embrião para o nascimento de mais um novo ídolo feminista: Clarice.

Vocês tratam o feminismo como a capa da Vogue. Quem estiver mais bonita vai pro pódio.

Vira diva, musa, rainha.

E mulheres negras morrendo.

Eu queria lembrar a vocês que essas mulheres negras morrendo que vocês negligenciam são: suas empregadas domésticas, as faxineiras de suas universidades, as garis e vendedoras ambulantes nas ruas de suas casas, a garçonete da lanchonete do teu cursinho “top”, a “tia da limpeza” da empresa que papai trabalha, a mãe desesperada do “pivete” de quem você esconde a bolsa.

Entender o feminismo vai além de caçar vídeo fofo onde uma moça rica ganha visibilidade e dinheiro sobre a obra de mulheres negras e usando a imagem da dor para se dizer feminista, ao mesmo tempo que, junto com o namorado, faz vídeos de gosto bastante duvidoso – o Porta dos Fundos parece saber criticar o racismo APENAS humilhando ainda mais os negros, e criticou o islamismo humilhando mulheres árabes. E foi chamado de genial em ambos os momentos.

Vocês amam Clarice porque ela muito se assemelha a vocês, seja pelo estilo de vida namastê, de voz suave, doce, pele lisa e macia coberta por um vestido florido da Farm, seja pela facilidade que ela tem enquanto comunicadora de levar o que quiser a quem ela quiser. Mas as mulheres negras vocês não ouvem.

E eu não quero aqui EXIGIR uma ação concreta porque não acho muito simples cobrar ação do individuo. Mas essa máscara que vocês usam por vontade própria eu vou questionar, sim. Debates raciais não são raros aqui no CHUTE. Raro é o debate racial que visa entender a população negra. Em vez disso o que vejo são mulheres brancas criticando quando nós fazemos algum apontamento enérgico.

Eu não tenho mãe rica que vai me enfiar na Globo Produções, eu não tenho namorado cool colunista da Folha, que cada vez que eu tire foto com ele chovam comentários de “AIIII CASAL FOFOOOOO”, eu não tenho um programa na Fox com total liberdade pra criar o que eu quiser, eu não sou branca de olhos azuis.

No lugar eu tenho:

  • Uma coleção de humilhações masculinas de homens que me esconderam por eu ser negra – e alguns confessaram isso com naturalidade.
  • Um esforço hercúleo pra sair da cama todo dia sabendo o que me aguarda da porta pra fora
  • Um medo fodido de morrer por ser negra
  • Uma coleção de humilhações no trabalho, de colegas que ja apontaram pra mim e riram da minha cara quando assumi meu cabelo crespo, e eu, recém contratada como assistente, não podia levantar a voz e cantar I’M A SURVIVOR.

Vocês decoraram as palavras “empatia” e “sororidade”, mas vocês não praticam. Vocês agem como se “tolerar” dividir um coletivo com negras fosse mais que suficiente, e a gente que se vire.

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