Machismo, saúde da mulher e cirurgias plásticas: o que as panelas têm a ver com isso? – Por: Karen Polaz

Não precisa vasculhar exaustivamente a internet para encontrar notícias diárias de mulheres que se submeteram a procedimentos cirúrgicos e não saíram da operação como haviam entrado — e, no pior sentido que o termo antes-e-depois pode adquirir: deformadas, mutiladas, rasgadas, traumatizadas, com paralisias físicas, cicatrizes enormes e infecções gravíssimas, quando não mortas. Vale lembrar que qualquer intervenção cirúrgica, por menor que seja, envolve riscos à saúde.

A possibilidade de atingir padrões de beleza ideias/ilusórios faz com que, todos os anos, milhares de mulheres se disponham a correr risco de morte ao procurar esse tipo de intervenção estética. Dispõem-se de maneira voluntária, acreditam alguns, e por isso a culpa seria delas se algo não correr com sucesso. Infelizmente, uma aparência interpretada por muitos como “fora do padrão” pode levar esta pessoa a sofrer bullying incessante no círculo social e desenvolver um profundo sentimento de rejeição e exclusão. Antes de chegar ao ponto de se expor a tal nível de periculosidade em uma cirurgia estética, portanto, há um longo caminho de sofrimento e dor. Independente de quão fora do padrão seja, cada mulher sabe a intensidade das batalhas diárias que trava contra o espelho.

Neste processo, o machismo é a causa e a consequência: com o objetivo de parar de sofrer por não se encaixarem dentro dos padrões estéticos, ilusórios e sufocantes, mulheres se submetem às cirurgias de encaixe, apesar dos perigos.

A propósito, deve ser bastante raro encontrar alguma mulher que, pelo menos uma vez na vida, não tenha lançado mão de quaisquer artifícios para “parecer melhor” do que se é, como maquiagem, cremes de todos os tipos, tinturas de cabelo, depilações etc, etc, etc. Vivendo nesse sistema que oprime e faz com que tenhamos vergonha de nossos corpos, sinto uma empatia aguda com aquelas que jogam a toalha e recorrem às operações plásticas e, a elas, deixo toda minha solidariedade.

Mas, voltando três casas no jogo das questões básicas, eu me pergunto sobre o que pode haver de tão errado em seios tamanho P. O que pode haver de tão ofensivo em gordurinha na altura no umbigo que a mulher se sinta pressionada a cortar o “excesso”?

 

Imagem: Thinkstock/UOL.

O fato infeliz é que o discurso para que a mulher deseje a beleza ideal, e faça o que for possível para alcançá-la, parece ser muito mais forte que o de amar a si mesma. Como alguém que cometera um crime e se arrepende, a mulher tenta expurgar a culpa do seu corpo supostamente fora de lugar se entregando à autopunição em forma de bisturi, pelo menos para as que podem pagar por isso. E, por inúmeras vezes, acaba resultando em mais um corpo sem vida na mesa cirúrgica, que nada tinha de errado antes da tragédia suceder.

Com isso, não pretendo banalizar a discussão sobre estética e saúde e longe de mim desprezar os avanços da medicina moderna ocidental reduzindo toda a discussão apenas ao machismo. Mas não há meios de fazer este debate sem invocar as relações sociais machistas que estão associadas a padrões ideais de comportamento e beleza construídos como sendo de mulheres e consequentes danos à saúde.

Outro exemplo que pode parecer bobo e que eu conheço muito bem, porque vem de casa, diz respeito a panelas. “Mas o que tem a ver machismo, cirurgias estéticas, problemas de saúde e panelas?”. Explico. Em casa sempre cozinhamos com panelas de alumínio que, depois de usadas, são devidamente lavadas e areadas com palha de aço para que mantenham seu aspecto brilhante. Acontece que esse processo leva a panela a soltar partículas do metal na comida, e o acúmulo de alumínio e outros metais no organismo pode provocar o desenvolvimento de doenças degenerativas, como Parkinson e Alzheimer. Óbvio que outros fatores levam a essas e a outras doenças, o tema é demasiado complexo, mas já se sabe que há relação entre moderadas concentrações de alumínio no corpo e algumas enfermidades degenerativas. Talvez nada que seja devastador para a saúde, mas não custa prestar atenção.

Quando tomei conhecimento disto, pareceu-me interessante avisar em casa e tentar trocar as panelas de alumínio, depois de décadas de uso diário, pelas de inox, pois li que desprendem menos partículas de metal e não precisam ser areadas para manter o brilho. Então comprei as panelas novas e, para minha desgraça, as panelas novas mancham. Foi aí que esbarrei nos padrões de comportamentos esperados por mulheres de classe média na idade da minha mãe, acima dos 50 anos que, no caso dela, apesar de trabalhar fora há muito tempo, passou uma parte da vida como dona-de-casa: não se admite viver sob o mesmo teto que panelas que, mesmo limpíssimas, parecem sujas por apresentarem poucas manchas.

Por que uma panela brilhante é mais importante que uma panela que prejudique menos nossa saúde? O que pode haver de tão errado em uma panela com manchas desde que esteja limpa? Como isso pode ser tão afrontoso?

Como se vê, não se trata se uma família sem acesso à informação ou sem dinheiro para investir em panelas novas. Mas minha mãe e muitas outras mulheres foram criadas assim, ou seja, manter uma família e uma casa em ordem significa, entre outros aspectos, ter panelas que pareçam espelhos.

De novo, não pretendo aqui simplificar uma discussão complexa. Mulheres de camadas sociais mais pobres, por exemplo, na maioria das vezes têm que trabalhar fora para complementar a renda familiar e não contam com os serviços de diaristas e babás para limpar a casa e cuidar dos seus filhos, sobrando menos tempo para se dedicarem às tarefas de limpeza exaustiva da casa. Tempo este que mulheres das classes médias podem se dar o luxo de dispor, se não houvesse outros meios, como direcionar os afazeres do lar para as mãos das empregadas domésticas.

O ponto que quero mostrar, contudo, é que ser uma dona-de-casa perfeita, com panelas brilhantes que nunca ninguém vê e que permanecem a maior parte do tempo guardadas no armário, traz mais satisfação imediata do que a possibilidade de desenvolver doenças no futuro. É um discurso que vem perdendo força, tanto pelo pulso da vida moderna quanto pelos progressos no mundo do trabalho acerca da igualdade de gênero, que tem levado as novas gerações de mulheres a dar cada vez menos importância ao cuidado acachapante com a casa, preferindo maior praticidade. Mas, vamos admitir, é um discurso que venceu na vida.

O exemplo das panelas nem de perto se compara ao das cirurgias plásticas e seus perigos para a saúde das mulheres, mas ambos fazem parte da mesma estrutura de pensamento que nos condiciona a preferir correr riscos para nos encaixarmos a certos padrões de nós esperados. Lembro que ser dona de um par de seios pequenos ou grandes, de panelas com ou sem manchas, nada traz em si de genuinamente certo ou errado. Trata-se, portanto, de hierarquizações sociais arbitrárias do que deve ser certo ou errado, o que não significa que oprimam menos.

Fonte: Blogueiras Feministas

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