Manifestantes fazem ato contra escolha de Gyselle Soares para o papel da escrava Esperança Garcia em peça: ‘embranquecimento da pessoa negra’

Esperança Garcia foi a primeira advogada do Piauí. 'Eu me considero todas as cores, sem cor', diz atriz.

Ativistas do movimento negro realizaram um protesto na noite desta terça-feira (12), em frente ao Theatro 4 de Setembro, no Centro de Teresina, contra a atuação da ex-BBB Gyselle Soares no papel de Esperança Garcia, a primeira advogada negra do Piauí, na peça “Uma escrava chamada Esperança”.

Segundo a ativista da Rede de Mulheres Negras do Piauí, Sônia Terra, a escolha de Gyselle para interpretar Esperança representa um “embranquecimento de uma pessoa negra”.

“As crianças que vão assistir o espetáculo vão ficar na cabeça que a Esperança Garcia é uma pessoa branca”, afirmou a ativista Sônia Terra.

‘Me considero de todas as cores’, diz Gyselle

A ex-BBB declarou que as manifestações não a abalaram nem entristeceram. Segundo ela, é uma oportunidade de aprendizado. Quanto à cor da pele, questionada por grupos negros, ela disse considerar-se “de todas as cores” e que, como atriz, pode viver qualquer papel.

Ex-BBB Gyselle Soares foi escolhida para interpretar Esperança Garcia (Foto: Jociel Fotografias)

“As pessoas têm que comentar o que acham, a gente tem que respeitar o direito de resposta delas, e é importante pra mim como atriz poder ser qualquer coisa, posso viver o que quiser, se eu quiser ser uma leoa, vou ser uma leoa, se quiser ser uma escrava, vou ser uma escrava e viver de uma forma bonita”, disse.

“Eu me considero todas as cores, sem cor, um ser humano com coração que pode sentir tudo, de todo mundo. Estamos no mundo, somos todos iguais, nossa pele não tem cor, nosso coração não tem cor, não podemos nos definir assim”, completou.

Diretor considera discriminação

Em entrevista à TV Clube, o diretor da peça, Valdson Braga, disse que a atriz não pode ser discriminada por conta de um papel. A peça foi apresentada no principal teatro do estado, o Theatro 4 de Setembro, localizado no Centro da capital.

Valdson disse que chegou a procurar os movimentos negros antes da escolha da atriz que iria interpretar Esperança, mas não obteve retorno. Os manifestantes informaram que o movimento negro não foi procurado.

Quem é Esperança Garcia?

Desenho de Esperança Garcia, negra escravizada que foi reconhecida como primeira advogada do Piauí (Ilustração: Valentina Fraiz)

Esperança Garcia foi uma mulher negra escravizada na fazenda de Algodões, próximo ao município de Oeiras. Ela se tornou conhecida após escrever uma carta para o governador da capitania do Piauí, denunciando os sofrimentos que passava na casa de seus senhores. No texto escrito no dia 6 de setembro de 1770, ela pediu providências ao governo.

A carta foi encontrada em 1979 no arquivo público do Piauí, pelo pesquisador e historiador Luiz Mott. Em setembro de 2017, 247 anos depois da escritura da carta, através de solicitação da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí, Esperança Garcia foi reconhecida pela OAB/PI como a primeira advogada piauiense.

Em carta escrita a punho, Garcia denuncia maus tratos (Foto: Reprodução/TV Clube)

Confira a carta de Esperança Garcia:

“Sou escrava da administração do capitão Antônio Vieira de Couto. Ele me tirou da Fazenda dos Algodões, local onde vivia com meu marido para trabalhar de empregada doméstica. Aqui não passo bem. O primeiro dos grandes sofrimentos é que meu filho sofreu muitas pancadas e é apenas uma criança. Chegaram a tirar sangue dele pela boca. Já comigo, não consigo nem explicar, mas para eles pareço um saco de pancadas, tanto que caí certa vez de cima do sobrado. Só escapei pela misericórdia de Deus. Já a segunda é que estou com meus pecados para confessar há três anos e mais três filhos para batizar. Peço pelo amor de Deus que olhe por mim e peça ao procurador para que me mande de volta para a casa de onde me tiraram do lado do meu marido e da minha filha”.

De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia.

Foto em destaque: Reprodução/ G1

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Esperança Garcia e os usos do passado no presente: Direito e memória

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