A máquina de fazer ativistas não respeita subjetividades

É comum nos movimentos sociais a ideia de coletividade ser colocada acima do indivíduo. Afinal, o lema dos movimentos que defendem as esferas oprimidas da sociedade é o “juntos somos mais forte”.

Por Stephanie Ribeiro, do  HuffPost Brasil

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O que é preciso entender é que por trás do coletivo sempre existiu e existirá o indivíduo e que esse indivíduo sempre terá suas buscas (e isso não necessariamente é ser individualista, muito menos significa despreocupação com as pautas e lutas em prol de todos).

Meu atual esforço — como mulher negra e ativista que sou — também se baseia em demarcar minha posição enquanto sujeito e, para isso, existe a necessidade de que respeitem as minhas escolhas e subjetividades.

Porém, não é fácil. Afinal também vai contra a narrativa racista que escravizou pessoas negras, e também à ideia de apenas juntos somos mais fortes.

Quem são os sujeitos?

Tornar-se sujeito é uma busca dos grupos sociais marginalizados. Entretanto, o que é ser sujeito para uma mulher branca não compreende o que é ser sujeito para uma mulher negra, já que, dentro das vivências sociais, as realidades de uma se distanciam das realidades da outra.

Isso acontece da mesma maneira em diversos grupos. A questão é que, dentro deles, os indivíduos que os compõem também diferem nas suas concepções do que é ser sujeito.

“Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. […] Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.”

(Grada Kilomba, Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. p.124)

À medida que se somam as opressões, mais a definição da individualidade é compelida para fora do nosso próprio domínio, pois recai um maior número de estereótipos acerca da nossa existência. Quanto mais oprimido se é, maior o discernimento do que não é ser considerado sujeito. Ou seja, o negro consciente acerca de sua negritude é capaz de entender perfeitamente como age a branquitude, pois ele é o outro desse sistema, no qual o branco é o sujeito principal.

Ao mesmo tempo, o branco não é capaz de entender tão perfeitamente o que lhe faz branco e nem o que é ser negro e, consequentemente, tem mais dificuldade de compreender a sociedade racista. Isso porque para o sujeito branco, o normal é ser como ele e, com isso, todo o resto se molda a partir de si.

Por isso, o que define quem é sujeito e quem não é, é a sociedade. Para que haja mudanças nessa estrutura, é preciso reformular determinadas convicções e condutas.

“A branquitude é como um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo.”

(Frankenberg, 1999b, pp. 70-101, Piza, 2002, pp. 59-90)

Portanto, chega a ser irônico pensar que quem passa por um processo muito mais complexo de entendimento sobre sua identidade não seja considerado o sujeito. Para o Branco, basta ser branco. Para o homem, basta ser homem.

Para uma mulher negra ser vista como indivíduo, há um esforço que nunca terá fim. E é dentro da sociedade racista e sexista que é estruturado o pensamento idealizado do que é ser negro, do que é ser mulher, e é nela que, assim que nascemos, nós, mulheres e negras, somos encaixadas em padrões limitados: somos as mulheres que trabalham, servem, transam e/ou nutrem alguém.

“Tornar-se negra” é um processo de conscientização que, para além de necessário, é doloroso, pois significa identificar as maneiras pelas quais esses estereótipos limitam o nosso ser. Adoece-se, principalmente, psicologicamente. Diariamente estamos enfrentando inúmeras pequenas batalhas (“micro-agressões”) e algumas de nós se encontram frente a outras grandes batalhas que fazem parte do cotidiano e que se superpõem em algumas narrativas negras.

Neste ínterim, eu questiono como cada mulher negra militante possa se sentir dentro dessa conjuntura. Eu me preocupo com a minha sobrevivência e de todas essas mulheres dentro desse sistema. E me nego nesse momento a aceitar agressões que venham mesmo de pessoas do grupo que faço parte. Não posso mais aceitar que me responsabilizem pelas próprias frustrações, que me façam carrregar pesos e culpas que não são minhas, que me odeiem como forma de resposta as dores criadas pela estrutura que estamos combatendo.

Tem dias que eu estou mal: não quero sair, não quero conversar, não quero ver pessoas. Existem dias que realmente não quero continuar a ser eu. Existem vários momentos no dia que considero o ativismo algo que me adoece.

Como, então, a militância se mostra muitas vezes tirana, nesse contexto?

Existe uma cartilha “invisível” extremamente comum, que molda as ações que devem ser tomadas por um(a) ativista.

A preocupação coletiva, que é embasada na falsa preocupação individual, se esquece de que não existe um molde: somos diferentes e semelhantes. Fazemos parte de uma sociedade patriarcal e católica, onde é mais fácil “tutelar” (ação que carrega uma opressão e consequente hierarquia) ao invés de ser empática e manter respeito pelas peculiaridades das demais.

Algo que nos deixa semelhantes é que nós, mulheres negras, passamos por experiências racistas e sexistas. A forma como procedemos e respondemos a isso, muitas vezes é diferente. A imposição do discurso único para todos os indivíduos de um grupo ativista, é tão prejudicial quanto a ideia da história única.

Acredito que estamos vivendo em um momento no qual há muitas imposições, muitas cobranças, demasiados discursos vazios e deslegitimações alheias. Ninguém se importa com o ponto individual, se for tudo em prol docoletivo.

Defendo que, antes de falarmos do feminismo e ativismo negros seja interessante o questionamento sobre como as estruturas ativistas se calcam supostamente sem hierarquia, e no fundo acabam sendo também muito opressoras.

A feminista Jo Freeman em seu artigo “A Tirania das Organizações Sem Estrutura”que diz que ao contrário do que gostariamos de acreditar, não existe grupo “sem estrutura”; inclusive isso dá margem para abusos. Mesmo que hoje muito se faça virtualmente, as estruturas existem nos movimentos sociais e continuam sendo negadas. Sendo assim, quem, de alguma forma, não age segundo as regras impostas, tende a sofrer as consequências disso.

Foi com o tempo que entendi que nem todo mundo se sente “irmão” ou “irmã”, que algumas pessoas não querem se abrir para determinadas questões, mesmo sendo de algum grupo socialmente oprimido; que outras pessoas tem narrativas diferentes da minha; que o coletivo não pode impor uma narrativa única; que uma pessoa negra não é culpada pelo racismo se ela se abstém de falar disso, bem como, uma feminista não é culpada pelo machismo, por não falar de feminismo; que pessoas (mulheres, negros, lgbts) podem ser tímidas, ou exibidas; que algumas podem querer ser ativistas e outras não.

E que, por fim, algumas vão querer te fazer bem e outras não. E isso é ser uma pessoa. Pessoas sentem inveja, medo, dor, tem vontades, são empáticas ou não, pessoas são diferentes. A ideia do coletivo é fortalecer algumas questões, mas a indesejável consequência é a retirada da subjetividade e da particularidade de outras questões.

Quando fazemos parte de um movimento social, não deixamos de ser pessoas. Por isso agimos como tal. A romantização da união e irmandade, muitas vezes, abafa relações extremamente abusivas. Nós, feministas, somos capazes de identificar que a sociedade cria a rivalidade entre mulheres, entretanto, quando alguma se propõe a debater a inveja, essa é massacrada. Mesmo que todas sejam educadas para serem rivais, falar sobre é preciso. Portanto, a não-romantização do(a) ativista é uma urgência.

Freeman escreve sobre isso também. Em determinado momento em seu artigo ela esclarece como os próprios movimentos fazem ao negar uma organização e estrutura. É criado o que eles mesmos condenam que são as “estrelas”, as pessoas que se destacam.

Segundo Freeman, “vivemos numa sociedade que espera que grupos políticos tomem decisões e escolham pessoas que articulem essas decisões para o público em geral. A imprensa e o público não sabem como escutar seriamente as mulheres enquanto indivíduos; eles querem saber como o grupo se sente.”

Ela usa como exemplo o grupo que faz parte, o de mulheres. Porém podemos facilmente fazer uma analogia com todos os movimentos sociais. Pois muitos desses não escolhem um porta-voz, mas as circunstancias os criam. E mesmos essas pessoas sabendo que não falam por todos, são elas que são procuradas quando se quer uma posição sobre o movimento.

Inclusive, Freeman ainda completa escrevendo que a forma com que o movimento age perante essas pessoas que se destacam tende a ser ignorante. Ao invés de construírem uma figura representativa coletivamente, preferem agir com o isolamento.

Ela escreve:

Queiram ou não, goste o movimento ou não, por omissão, as mulheres com distinção pública são colocadas no papel de porta-vozes. Essa é uma das origens do que normalmente se sente das mulheres consideradas “estrelas”. Já que elas não foram escolhidas pelas mulheres do movimento para representar as posições do movimento, elas se ofendem quando a imprensa pressupõe que elas falam pelo movimento…

Assim, o combate às “estrelas”, na verdade, encoraja precisamente o tipo de irresponsabilidade individual que o movimento condena. Ao expulsar uma companheira sob a pecha de “estrela”, o movimento perde qualquer controle que possa ter tido sobre a pessoa, que se torna livre para cometer todo tipo de pecado individualista de que foi acusada.

Tenho a impressão que, enquanto movimentos, queremos sanar todas as grandes e incrustadas mazelas geradas pela nossa sociedade, sem ter o conhecimento de como curar as pequenas feridas de cada uma de nós.

Com o tempo fui me apegando muito mais ao individual, não porque deixei de me preocupar com as lutas coletivas, mas porque entendi que o isolamento é saudável. Isso, principalmente, quando os movimentos se comportam de forma que me adoecia psicologicamente e fisicamente.

Eu realmente não aguento mais as indiretas que são sobre tudo: salão de beleza que vou, a roupa que usei em um evento, a viagem que fiz nas férias, a profissão que escolhi, etc. Tudo que faço pode ser julgado pelas outras ativistas mesmo que isso não seja pauta relevante de debate, fui acusada de coisas absurdas como de ter arrumado um namorado bonito para vender feminismo de casal.

Pessoas acusam outra ativistas de estarem planejando boicotes quando elas construíram narrativas diferentes que tiveram mais destaque que as suas. Chega a ser desonesto. Caminhos são trilhados de forma divergentes e, no fundo, nem mulheres brancas tem considerável poder estrutural para determinarem quem será representativo e quem não. Muito menos negras.

Indago-me cada vez mais se os limites do meu ser, enquanto indivíduo, são às vezes desrespeitados, em nome de um “bem-maior”, ou se são apenas falta de empatia, honestidade e respeito, que deixam de ser trabalhadas, quando viram apenassímbolos.

Mesmo dentro de um movimento supostamente horizontal, de seres imperfeitos, onde erros são comuns, continuamos interpretando um modelo de ativista perfeito que vive em torno de outras pessoas quase perfeitas.

Eu digo “quase” pois sempre há a ideia do: eu faço isso e você não. Aparentemente, as ações não são genuínas: elas são feitas na espera da legitimação por meio do aplauso. Isso tudo desconsidera que ter a possibilidade de agir em determinado campo, não te coloca acima dos demais.

Foi muito comum por um tempo eu ler pessoas que diziam: eu milito nas ruas e você não. Isso desconsidera que, por exemplo, há pessoas que têm fobia social, problemas de locomoção ou simplesmente não querem estar nas ruas, mas têm ótima habilidade em escrever textos.

Não estamos deslegitimando a narrativa imposta: estamos nos auto-deslegitimando. Poderia ser compreendido como um “ensinamento”, mas parece aquela velha forma de lecionar com palmatória à mão e a superioridade na cabeça.

Eu não sou perfeita. Ainda bem. E não quero ser. Não quero ser obrigada a ler isso ou aquilo para ter voz; não quero me sentir deslegitimada em espaços por querer falar ou não das minhas vivências; não quero falar que ativista de verdade faz isso ou aquilo; não posso ser cobrada de compartilhar, ler, falar sobre todas as pessoas negras.

Não quero viver os movimentos sociais como se eles fossem uma relação abusiva e, não quero fingir que estamos todos prontos e fortes, sendo companheiros numa guerra, se nas pequenas batalhas individuais não nos apoiarmos, pelo simples fato de não acreditarmos e nem praticarmos nossas ideologias.

A máquina de fazer ativistas não respeita subjetividades, limites e não age conforme a realidade. As frases de efeito apenas iludem: “um sobe e leva o outro”. Mentira. Se fazemos parte de grupos marginalizados e isso é um fato para além do nosso querer, não temos poder estrutural real.

Alguns tem acesso a um poder concedido que pode ser inclusive facilmente tirado. Portanto, quando atingimos determinados espaços de destaque, não conseguimos qualificar a vida de todos os semelhantes, instantaneamente ou radicalmente. Lidar com esse fato é maturidade de entender a realidade, e talvez isso seja algo que falte individualmente e coletivamente nos movimentos sociais.

Um movimento que não entende a complexidade e multiplicidade de cada Uma de Nós não é capaz de me libertar, pois só reproduz o que me oprime, quando não Me permite ser Sujeitos de Nós mesmos.

“Eu quero ser eu, não quero ser idealizada e nem inferiorizada. E eu, assim como todas as pessoas, quero dizer que há dias em que sei, e dias em que não sei. Às vezes eu choro e às vezes eu rio, às vezes eu quero e às vezes eu não quero. Quero ter essa liberdade humana de ser eu.”

(O racismo é uma problemática branca, Grada Kilomba em entrevista para Djamila Ribeiro.)

O título faz alusão ao livro: A máquina de fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe.

 

 

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