Simone André Diniz Rodrigues, 45, de Pirituba (SP), surpreendeu-se certa vez quando lia o jornal. Um anúncio de vaga para empregada doméstica dizia dar preferência a mulheres brancas. Ela decidiu registrar um boletim de ocorrência, mas nada aconteceu, e o foi caso arquivado.
Com a ajuda do advogado Sinvaldo Firmo, coordenador jurídico do Instituto do Negro Padre Batista (INPB), o caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos — e o governo paulista, obrigado a indenizá-la anos depois.
Ao UOL, Simone conta que não pensava em dinheiro — mas queria igualdade e evitar que histórias de discriminação se repetissem.
‘Primeira coisa que me perguntou foi se eu era negra’
“No início do ano de 1997, estava folheando o jornal e um anúncio de emprego me chamou muita atenção. Na descrição da vaga, estava escrito: precisa-se de uma empregada doméstica, de preferência branca, maior de 21 anos e sem filhos.
Tinha 19 anos. Ainda estava estudando para ser auxiliar de enfermagem, profissão que não exerço por opção, era solteira, não tinha filhos e não precisaria daquela vaga nem entraria no requisito por causa da idade.
Porém, o que me chamou a atenção foi o requisito da cor, aquilo era errado e me revoltou bastante. Decidi ligar para o telefone indicado no jornal como se tivesse interesse em aplicar para aquela oportunidade.
Quem me atendeu foi a mãe da pessoa que estava precisando dos serviços de limpeza, ou seja, a ‘patroa’.
No mesmo instante agradeci pela atenção, desliguei e liguei na Ordem de Advogados do Brasil (OAB). Fui atendida por Sinvaldo Firmo, que é meu advogado até hoje.
Quando contei para ele o que havia ocorrido por telefone, ele questionou se eu havia escutado certo e lido corretamente o anúncio da vaga. Afirmei que sim. Então, ele pediu o número para entrar em contato e ver se, realmente, aquilo era verdade. Se fosse, era racismo e precisávamos de provas.
Sinvaldo me ligou após entrar em contato com os anunciantes da vaga e perguntou se eu queria fazer um boletim de ocorrência, pois, de fato, era racismo. Eu nem pensei duas vezes. Fomos logo à delegacia.
Comissão interamericana
Mesmo com toda repercussão com entidades antirracistas, líderes de movimentos negros, entre outros, nada importava para o governo e o caso foi arquivado pelo Ministério Público, que na época não considerou a denúncia como crime e muito menos racismo.
Graças ao advogado Sinvaldo e à advogada Maria da Penha Guimarães, que também auxiliava no caso, o processo foi parar no Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil).
Em outubro de 1997, a denúncia acabou indo para Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Em 2008, ganhei o caso [a CIDH concluiu pela responsabilização do Estado brasileiro e fez 12 recomendações ao Brasil]. O governo do Estado de São Paulo me indenizou em R$ 36 mil por danos morais. Além disso, também me deram, por ordem judicial e que foi aprovada este ano, uma bolsa de estudos para que eu pudesse ingressar na faculdade e cursar o que eu quisesse.
‘Quero entrar em qualquer shopping e não ser discriminada’
Nenhum dinheiro compra a liberdade de ir e vir, quero entrar em uma [loja da] Zara sem medo, no mercado Carrefour, em qualquer shopping e não ser discriminada. Isso me fez enxergar que o racismo está em tudo.
Acredito que as pessoas têm de lutar pelo que é de direito, sem pensar em recompensa.
‘Não tinha consciência de raça na época’
Não tinha consciência de raça na época, mas sabia que era errado proibir uma pessoa de trabalhar pela cor da pele. Não sabia o quão grave aquilo era naquele tempo, eu simplesmente achava o cúmulo do absurdo proibir que uma pessoa trabalhe devido à cor da pele.
Talvez a minha indignação com esse tema tenha surgido quando meu pai, Celso Diniz, contava histórias em que meu irmão, Sérgio Diniz, que atualmente tem 61 anos, era apelidado de “colored” pelo seu gestor na oficina mecânica em que trabalhava.
Depois de um tempo, meu pai me contou que era porque ele era o único preto da oficina.
‘O caso durou mais de 25 anos’
Quando iniciei o processo, era solteira. Nesse período, me casei com Alexandre, pai das minhas duas filhas, a Pietra e a Pérola. No início, meu marido ficou assustado com a história. Deixei claro que não queria ‘fazer barraco’ com o governo, mas que estava atrás dos meus direitos.
As pessoas pensam muito isso de nós, mulheres negras, de que quando a gente se impõe, é porque somos ‘barraqueiras’, mas estamos correndo atrás do que é nosso por direito. Depois, ele entendeu e me apoiou. Deixei claro que não iria desistir.
Infelizmente, não aconteceu nada com a família que anunciou a vaga. Na época, eles alegaram que já tiveram uma doméstica negra e que ela batia nas crianças e disseram que não eram racistas, pois a contratante também disse que seu marido era negro. Contra eles, o caso segue arquivado.”