Memórias e Reexistências em Vozes Negras do Recôncavo Baiano

“Eu conheci dois escravos. Eu conheci minha madrinha Tereza, que foi escrava e foi minha madrinha. Mamãe morou no terreno de compadre Joaquim Inácio e esse Paulo morava tudo perto… Era tudo vizinho. Na fonte que nós panhava água elas também panhava, na fonte que nós lavava, elas também lavava”. Essas são palavras de Dona Verônica Francisca de Jesus, uma mulher negra que, com a narrativa de suas experiências marcadas pelo convívio com o “povo do cativeiro”, despertou o meu olhar para as memórias das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais do Recôncavo sul da Bahia, a partir do contexto do pós-escravidão. 

Segundo ela, “Paulo andava todo pateando, chamava Paulo Sapo. O Romão chamava Romão Lagartixa. Feliciano chamava Feliciano Pato. Andava tudo pateando de andar esbagaçado trabalhando na escravidão”. Essa fala de Dona Verônica foi captada em entrevistas realizadas em 1997 e 1998, durante um trabalho de campo que traria importantes contribuições para o curso de mestrado em História realizado na PUC/São Paulo. O depoimento de Dona Verônica soma-se a vinte e cinco outras vozes registradas entre o final do século XX e o início do século XXI nessa mesma região do território baiano. Com o objetivo de fazer frente aos efeitos da desmemória e do memoricídio que afetam de modo radical as populações afro-indígenas que construíram a história da localidade, revisitei esse rico passado que agora ganha novos significados.  

Conforme assinala Lélia Gonzalez, em “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, um dos artigos mais importantes sobre o feminismo negro brasileiro, “o lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo”. Foi a partir das leituras sobre oralidade e memórias, bem como das inquietudes diante da pouca diversidade que marcou, durante muito tempo, as pesquisas no campo da História,  que uma garota do interior da Bahia – a primeira do pequeno município de Dom Macedo Costa a cursar um mestrado – descobriu a legitimidade do uso da primeira pessoa para falar da experiência dos seus. Mesclando memórias pessoais e familiares com os relatos de trabalhadoras e trabalhadores do campo, principais interlocutores da pesquisa,  problematizei trajetórias de pessoas subalternizadas cujas “vidas infames” estão direta ou indiretamente vinculadas às estruturas sociais reconfiguradas no pós-escravidão. Através dessa pesquisa, reencontrei um passado de transformações e também de muitas e significativas permanências. Ali, naquela territorialidade tão íntima e povoada por sujeitos que fizeram parte da minha trajetória, as marcas da escravidão ainda estavam muito presentes.

Mapa do Recôncavo da Bahia, 1970.
Fonte: SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia.

O camponês do Recôncavo, que tem suas raízes familiares no processo de escravidão e liberdade do século XIX, vive dramas anônimos, invisíveis para o mundo acadêmico. Histórias protagonizadas por homens e mulheres negras que conheceram a escravidão, bem como por seus filhos, filhas, netas e netos, com distintos níveis de colorismo, perdem-se na amputação sistemática do passado promovida por uma estrutura social que investiu num ambiente pouco favorável à recuperação das memórias da escravidão e das trajetórias de uma verdadeira multidão de subalternizados que viveriam a sociedade do pós-abolição.

Não sabemos quem são, nem distinguimos suas trajetórias ou seus rostos. Ignoramos quase tudo sobre elas e eles, salvo alguns registros pontuais em algum arquivo judicial que atestam sua passagem pela vida. Poderia, portanto, ter recorrido, mais uma vez, aos arquivos da justiça ou da polícia local. Mas não era essa a minha intenção. Os arquivos jurídicos ou policiais fazem exatamente o contrário do que eu desejava realizar com minha pesquisa: apagam existências subalternizadas, dando conta apenas de efêmeros momentos em que elas se chocaram com o poder constituído. O que eu queria mesmo era desbravar outra possibilidade de investigação do passado para investir no combate à desmemória e ao memoricídio, desentranhando aspectos efêmeros e fugazes das vidas de pessoas comuns, ao mesmo tempo que me interessava lançar um foco de luz sobre o agenciamento das resistências e reexistências.

Entrevista com Dona Maria Madalena de Jesus em frente à sua casa.
Fotografia de Tau Tourinho. Santo Antônio de Jesus, 2009.

A tradição oral e os tempos da memória reverberam nas narrativas de homens e mulheres invisibilizados, trazendo de volta vidas que precisam ser consideradas, vozes que precisam ser escutadas. Pós-abolição, mundo do trabalho, cantos, danças, festas, ritmos, gestos e imagens… Tudo isso ganha importante significado nas vozes da resistência, nas vozes de sujeitos humildes que balbuciavam histórias do “povo do cativeiro”.

Que caminhos de luta, de vivência e de conquista da cidadania foram traçados pelas populações egressas da escravidão no sul do Recôncavo baiano? Que memórias da escravidão ainda podiam ser reconstituídas por mulheres e homens que transitaram na espacialidade do município de Dom Macedo Costa? Como foi possível driblar os limites à conquista da liberdade que se impunham mesmo após a abolição? Tais questões passaram a constituir um universo de inquietações muito minhas, mas que cada vez mais eu perceberia que são nossas.

Naquele contexto de final do século XX em que se incrementava o campo dos estudos da abolição e do pós-abolição, investiu-se bastante na pesquisa sobre a participação das populações negras nos processos de luta por cidadania e na proposição de políticas públicas de reparação social e racial.  Aprofundava-se também o debate sobre as lutas abolicionistas e as formas de inserção do negro na sociedade brasileira após a abolição da escravidão e a partir do advento da República. Contudo, muitas vozes ainda continuavam silenciadas. O trabalho e a vida cotidiana, mas especialmente as lutas, os desejos, os sonhos e as conquistas das mulheres negras continuavam, em grande parte, invisíveis, e somente na última década começaram a conquistar espaços de reflexão nos estudos acadêmicos. 

Se, durante o mestrado, eu tinha total consciência do meu envolvimento subjetivo com a pesquisa, especialmente por me saber uma historiadora de origem campesina que estava investigando modos de vida de trabalhadores e trabalhadoras rurais da localidade onde vivi por longo tempo, agora, a ênfase recai sobre a racialização da identidade dessa mulher negra que tem suas vivências enraizadas numa trama de histórias e memórias que constituem o Recôncavo sul da Bahia. A intelectual e ativista em que fui me transformando surge totalmente atravessada pelas memórias da escravidão e do pós-abolição, indissociavelmente entranhadas na vida das populações afro-indígenas do Recôncavo. Esse é o contexto em que emergem as memórias do que fui e sou.

Num domingo qualquer do mês de janeiro de 1997, quando eu me dedicavaà pesquisa em Dom Macedo Costa, aconteceu meu primeiro encontro com Dona Verônica. Foi um dos momentos mais importantes para a pesquisadora que eu me tornaria. Naquele dia descobri que havia uma mulher negra quase centenária passeando na casa de uma amiga e para lá me dirigi. No momento em que começamos a conversar eu vi um mundo de possibilidades. Logo me encantei com sua disponibilidade para narrar. Aquela mulher negra de palavras fortes e corpo fragilizado, bastante lúcida e consciente de sua trajetória, iria provocar novas e importantes reflexões sobre a minha própria vida, sobre minha ancestralidade. 

Dona Verônica Francisca de Jesus na porta de sua casa.
Fotografia de trabalho de campo. Laje, 1998.

Residia então no município de Laje em uma casa própria, mas passou a maior parte de sua vida como rendeira e meeira em algumas fazendas do município de Dom Macedo Costa, desde quando a localidade ainda era o distrito de São Roque do “Bate Quente”, pertencente ao município de São Felipe. Depois daquele domingo suas memórias e vivências têm se imbricado com questões identitárias bastante íntimas em todo o meu trabalho. Foi ela quem, com suas narrativas plenas de recordações lacunares do contato com sujeitos marcados pela vivência da escravização (o “povo do cativeiro”), redirecionou o meu olhar para as vidas de mulheres e homens anônimos do Recôncavo sul da Bahia, atentando especialmente para o modo como as referências aos tempos da escravidão traziam uma memória negativa para aqueles que buscavam apagar as imagens e as marcas desta experiência vivida por antepassados mais próximos. O primeiro encontro com Dona Verônica foi realmente um alumbramento. Foi quando eu me deparei, pela primeira vez, com as memórias da negritude em Dom Macedo Costa, a terra onde nasci.

A história de Dona Verônica que, além de trabalhar nas roças, exerceu a ocupação de rezadeira e parteira, circulando pelas fazendas do sul do Recôncavo da Bahia na primeira metade do século XX, expressa uma realidade vivenciada, em parte, por centenas de mulheres naquela localidade. Mãe de dez filhos, ela teve vários companheiros, mas nunca foi casada oficialmente. Ao ser questionada sobre a existência de seu pai, declarou: “não conheci pai não, conheci abaixo de Deus só foi a mãe, não tive pai não, o pai que eu tive só foi pra gerar”.

Sua narrativa me trouxe significativas lembranças da escravidão vivida e contada por parceiras e parceiros provenientes do cativeiro, com quem ela compartilhou a experiência do arrendamento. Todas as vezes que sua memória visitava o tema da escravidão, imediatamente, a narrativa recorria à terceira pessoa. Seus olhos tristes refletiam um abismo que se repetia em outros olhos com quem conversei sobre aquele passado de dolorosas memórias. As representações de vivências, delicadamente narradas por aquela senhora com quem estive por mais três vezes depois do nosso primeiro encontro em Dom Macedo Costa, trazem um passado ancestral, um passado geracional que se entrelaça às suas práticas de vida. No auge dos seus noventa e oito anos, idade que tinha na nossa última entrevista, rememorou inúmeras tarefas realizadas no mundo rural, relembrou companheiras e companheiros de trabalho e de vida. 

Era uma mulher de costas encurvadas pelo peso dos trabalhos e dos anos. Trabalhou na enxada, criou animais, colheu e cessou café, manocou fumo… aprendeu os ofícios de benzedeira e parteira com sua mãe e ajudou a trazer ao mundo inúmeras crianças. Trata-se de uma potente experiência de vida que traduz a complexidade das formas de sobrevivência criadas e recriadas em um cotidiano de intensas lutas e negociações. Foi assim que Dona Verônica conseguiu ultrapassar as barreiras da expropriação herdadas da cultura escravagista e redimensionadas pelas novas relações de poder constituídas no Recôncavo sul da Bahia, durante o século XX. Certamente, foi uma mulher sem igual por aquelas bandas e uma personagem irrepetível em nossos tempos.

Suas memórias deram vida aos ex-escravizados Feliciano, Romão e Paulo que aparecem com os corpos marcados pelo cativeiro, pois “andava tudo pateando de andar esbagaçado trabalhando na escravidão”, sinais da dureza do trabalho, aliada aos castigos recebidos. Foi um despertar de experiências traumáticas que deixaram marcas profundas no corpo, nos sentidos e na vida daquelas populações negras que transitaram pelo Recôncavo baiano, entre o final do século XIX e o início do século XX, carregando lembranças e reconstituindo costumes, nódoas das vivências da escravidão. Os encontros com toda a potência permitiram reconstituir caminhos e descaminhos da memória dessa mulher negra e fizeram-me pensar uma problemática central para as minhas pesquisas: o apagamento das referências ao passado escravagista da região e dos vínculos dos antepassados dos entrevistados com o cativeiro. As referências diretas praticamente inexistem. Quando esse passado surge nas falas das interlocutoras aparece de modo enviesado como uma realidade que envolve vizinhos e conhecidos, mas não os próprios familiares.

O processo de reconstrução de suas memórias ocorre em uma permanente interação entre o vivido, o aprendido e o transmitido. As palavras dão existência e significado ao corpo como lugar da dor, mas também como lugar da resistência e da superação. A memória denuncia a condição de subalternidade e de desumanização evidenciada nas desordens do corpo, que indefinem os sujeitos, tornando-os meio homens, meio animais. A recuperação da memória aponta, portanto, para os fortes vínculos da cultura local com a natureza, mas resgata também a violência física e moral envolvida nas relações de poder que traumatizaram aquelas vivências. 

 

Assista ao vídeo da historiadora Edinelia Maria Oliveira Souza no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF03HI01 (3º ano: Identificar os grupos populacionais que formam a cidade, o município e a região, as relações estabelecidas entre eles e os eventos que marcam a formação da cidade, como fenômenos migratórios (vida rural/vida urbana), desmatamentos, estabelecimento de grandes empresas etc.); EF03HI12 (3º ano: Comparar as relações de trabalho e lazer do presente com as de outros tempos e espaços, analisando mudanças e permanências); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF09HI07 (9º ano: Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS605 (Analisar os princípios da declaração dos Direitos Humanos, recorrendo às noções de justiça, igualdade e fraternidade, identificar os progressos e entraves à concretização desses direitos nas diversas sociedades contemporâneas e promover ações concretas diante da desigualdade e das violações desses direitos em diferentes espaços de vivência, respeitando a identidade de cada grupo e de cada indivíduo).

Edinelia Maria Oliveira Souza 

Historiadora; professora titular da Universidade do Estado da Bahia; pós-doutoranda em Estudos Culturais no PACC/UFRJ; E-mail: [email protected]; Instagram: edisouza7

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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