Uma história negra com certeza: a escrita histórica nos jornais negros paulistanos

No ensolarado sábado de 24 de outubro de 2020, algo inusitado ocorreu a um grupo de doze pessoas, a maioria delas negras, que fazia um passeio turístico no centro de São Paulo oferecido pela empresa Black Bird Viagem, que tem o propósito de destacar pontos e lugares importantes da história e da cultura negra da cidade. Ao custo de R$ 60,00 por pessoa, o percurso dura mais ou menos três horas, e começa no antigo Largo da Forca no bairro da Liberdade, passa por vários locais de referência negra e vai até a estátua da Mãe Preta, no Largo do Paissandu. Estando todos paramentados com máscaras e prezando pelo distanciamento social, em respeito aos protocolos de prevenção da Covid-19, o pequeno grupo teve a ingrata surpresa de ser seguido por policiais militares. Mesmo tentando despistar a vigília ostensiva e inexplicável, outras equipes de policiais em suas motocicletas e até na cavalaria os acompanharam a uma distância próxima. 

O clima de constrangimento foi geral e os sócios da empresa registraram a queixa por racismo e o Ministério Público instaurou inquérito civil, instando a Polícia Militar de São Paulo a prestar esclarecimentos sobre a atuação ostensiva dos seus agentes. Às vésperas de mais um Novembro Negro, diversos sites de comunicação noticiaram o ocorrido. A polícia militar, por sua vez, a princípio, soltou nota dizendo que acompanhou o grupo por achar que se tratava de uma manifestação e que prezaram pela segurança daquelas pessoas, como fazem com qualquer cidadão. Os desdobramentos desse caso podem ser acompanhados nas redes sociais da Black Bird Viagem. 

Esse episódio da atualidade serve de gancho para pensarmos sobre outro momento de luta ao direito à história negra de São Paulo, vivido por ativistas negros em novembro de 1931, durante a inauguração da herma de Luiz Gama, no Largo do Arouche, cercado de grande pompa e comoção pública. Pelas contas do que se publicou nos jornais O Clarim e Progresso, cerca de três mil pessoas participaram dessa celebração cívica. Cabe registrar que a questão de contar-se uma outra história para e sobre a cidade foi um dos pontos de preocupação e fricção do movimento negro paulistano e era umas das armas para conferir uma identidade positiva à população afrodescendente, em face da política de embranquecimento posta em prática via imigração em massa de europeus; do alinhamento à ideia de civilização europeia; e da naturalização do racismo mesmo antes da abolição. 

A herma de Luiz Gama, no Largo do Arouche, centro de São Paulo. Na base está escrito: “Luiz Gama. Por iniciativa do Progresso. Homenagem dos Pretos do Brasil”. Fonte: Acervo particular.

Na ocasião, o Largo do Arouche foi tomado por um grande regozijo público, estampado até mesmo nas páginas dos principais jornais comerciais, fazendo lembrar o próprio enterro de Gama, cinquenta anos antes. As mocinhas e rapazotes negros vestidos em seus melhores trajes, junto com a nata do movimento negro e os figurões da política chamados para falar no evento devem também ter incomodado a Guarda Civil da cidade, que naquela época não aceitava negros em seus quadros. 

Na segunda metade da década de 1920, aliás, essa exclusão justificou uma campanha para convencer as autoridades sobre a legitimidade de negros na Guarda, tomando como exemplo a figura de Henrique Dias, ícone negro no esforço militar do período colonial para a expulsão dos holandeses do nordeste açucareiro. A ideia de uma vida de sacrifício e sofrimento de Henrique Dias em prol da “pátria” contaria a favor das lutas do presente. A data de celebração do nascimento de Dias era a oportunidade para tratar da sua biografia e a associá-la ao presente: “Um dos brasileiros que honrou o Brasil e enalteceu a sua raça, dentro das suas atividades foi sem dúvida o grande guerreiro Henrique Dias. Este valente cabo de guerra, negro, conseguiu com seus homens, expulsar do solo da Pátria, os invasores, holandeses. Sustentou por largos anos luta aguerrida com os que queriam usufruir as riquezas do Brasil”

Esse e tantos outros artigos parecidos faziam referência ao passado negro e à primeira vista se mantinham num tom celebrativo e positivo. Mas, nas entrelinhas, poderia haver ali um recado às autoridades, aos intelectuais paulistas brancos e aos imigrantes europeus privilegiados nas seleções de emprego, nas melhores habitações, com maiores remunerações e benquistos pelos projetos de modernização da cidade, que se queria não-negra pelas elites.

No caso das narrativas lançadas nos jornais negros da cidade, como O Clarim, Progresso e A Voz da Raça, a gente negra, em sua maioria, teve na escrita da história sua forma de motivar a percepção de um outro passado dos negros no Brasil, baseado no trabalho de construção do país e na luta pela liberdade ou nas negociações contra o horror do cativeiro. Isso tensionava com a história canônica publicada nos livros, ensinada nas escolas, escrita por intelectuais e políticos que não tinham nenhuma neutralidade, a partir do seu lugar senhorial de produtores e detentores do conhecimento histórico. 

José Bueno Feliciano, no artigo O negro na formação do Brasil, publicado em 1933, no jornal A Voz da Raça, afirmava, categoricamente, que a história do negro, tal como se ensinava, se baseava num “sentimentalismo envenenado de nossas escolas, [e] com suas referências mais ou menos tolas ao ‘pretinho Benedito’, com seus elogios de raposas ao heroísmo de Henrique Dias, têm dado ao negro a impressão de que os seus antepassados foram uns desgraçados e de que os jovens negros, só por isso, têm que ser uns vencidos”. Contra esse estado de coisas, Feliciano convidava a população negra a se educar para engrandecer-se e também se contrapunha aos “caluniadores” da gente negra e apontava que a veracidade dos fatos podia ser consultada em documentos que embasariam outra narrativa para a história negra, para além da escravidão. 

Esse tipo de revisão certeira e o deslocamento estratégico da história oficial que alguns intelectuais negros fizeram nos anos 1920 e 1930 caracterizam uma emblemática forma de escrita da história negra, tematizando trajetórias desde a África e se conectando com as experiências de outras populações da diáspora africana. Exemplos disso podem ser observados nas traduções de matérias de jornais negros dos Estados Unidos, como o Chicago Defender e o The Negro World, em periódicos negros paulistanos. Havia notícias das populações negras e suas lutas contra o racismo e por inclusão em lugares como os Estados Unidos, Porto Rico, a França e a África do Sul. 

Capa do número especial d’O Clarim d’Alvorada, nos 39 anos da Abolição, em 13 de maio de 1927.

A história negra publicada nos jornais negros privilegiava outros entendimentos sobre os patrícios de cor e rejeitava, ainda que parcialmente, valores de supremacia cultural da branquitude contra os afro-paulistanos. A chave disso estava na insistência na luta pela liberdade como marcador da experiência de negros e negras do passado. Assim, realçavam-se os nomes ligados a movimentos antiescravistas e ao abolicionismo do século XIX, produzindo um panteão negro para o país, em que cabia uma ampla variedade de nomes e perfis como Luiz Gama, José do Patrocínio, Luiza Mahin, Henrique Dias, a Mãe Preta, Zumbi e os Palmarinos, Machado de Assis, o sacerdote compositor Nunes Garcia, o psiquiatra Juliano Moreira, entre outros. Expressões da saga de africanos e descendentes no território da América Portuguesa e, depois, do Império Brasileiro. 

A insistência na ideia de luta pela liberdade ou do horror que a escravidão causou e na humanidade que cada um desses nomes conseguiu preservar, além do brilho de personagens negros e negras em diversas áreas da vida, era o contraponto perfeito à temática única da escravidão que enclausurava historicamente a população negra: como se fosse o seu único passado e a justificativa para o racismo e a exclusão. Esses textos com novas compreensões do passado serviram como ferramenta pedagógica para uma identidade negra positiva e de legitimação das reivindicações políticas e das análises de uma sociedade em transformação. 

O caso de Luiz Gama vai nessa direção. A trajetória de resistência do homenageado se confundiria com a do próprio país e do que se ajustava para a história negra. Nascido livre de mãe africana também livre, Luiza Mahin, passaria pela injusta e ilegal queda na escravidão pelas mãos do pai de origem portuguesa. Daí viria a resistência ao cativeiro, a afirmação da liberdade que o levou aos estudos das leis, como autodidata, e seu sucesso como rábula nas petições que liberaram do cativeiro cerca de quinhentos escravizados e coroaram-no como herói nacional.

Na toada de erguer uma estátua em sua homenagem, um grupo de ativistas negros, liderados por Lino Guedes, ungiu a ideia para coincidir com o centenário de Gama, em junho de 1931. O jornal negro o Progresso, fundado meses antes do início da campanha, serviu de substrato para catapultar e dar publicidade à ação. A elevação do busto no centro da cidade seria um trunfo para o movimento negro paulistano concorrendo com intelectuais paulistas da envergadura de Alfredo Ellis Júnior, por exemplo, que vislumbravam a eliminação paulatina do elemento negro da sociedade paulista e minoravam o papel dos africanos e seus descendentes na constituição do estado. Para dar lustro à campanha e às narrativas dessa história negra, imagens e textos sobre Luiz Gama foram publicados à exaustão também n’O Clarim d’Alvorada.

Ao mesmo tempo, destacava-se que o trabalho de construção do país, desde a colonização, recaíra sobre os ombros da população afrodescendente, mesmo que sob a escravidão. Era essa a história que se revelava como pujante repertório de luta contra o racismo que embaraçava a vida dos negros na cidade. Em 1929, quando o jornal italiano Fanfula pregava o fechamento dos limites de São Paulo para a entrada de migrantes pretos e mestiços de outros estados da federação, o jornal Progresso recapitulava um rol de negros icônicos, como Machado ou Paulo Gonçalves, para rebater os “fascistas”. Deixava-se evidente que o trabalhador negro brasileiro era legitimamente o “nacional do país”, porque “antes do europeu aportar no Brasil, já aqui se desenvolvera uma agricultura graças ao braço negro. Não foi o estrangeiro que derrubou florestas seculares e plantou o nosso café, mas sim o preto”.

Outra personagem marcante das narrativas históricas, principalmente no jornal O Clarim, foi a Mãe Preta. A celebração das milhares de mulheres negras escravizadas, criadas das casas-grandes e cuidadoras das crianças das elites brancas foi feita por uma ala do movimento negro do período. A ideia geral era que elas eram as grandes promotoras da educação moral do país, responsáveis pela formação da maior parte dos homens da elite política nacional. José Correia Leite foi um dos maiores entusiastas da ideia de elevar uma estátua e dedicar um feriado nacional àquelas mulheres, que seria celebrado em 28 de Setembro, em referência à Lei do Ventre Livre de 1871. O projeto foi ventilado desde 1926 e ganhou força e apoio de políticos da capital federal e também em São Paulo na segunda metade da década de 1920, mas não se concretizou.

A história negra nesses jornais foi forjada pelas mãos de vários intelectuais negros e negras que nem sempre concordavam na apreensão e no entendimento que faziam do passado. Várias vozes atuaram na costura plural das narrativas históricas que deram uma interessante medida das trajetórias negras no pós-abolição. Se os corpos escravizados de antes desapareceram, o corpo negro livre permaneceu. Se a história escrita pelas elites foi um dos saberes a serviço da criação dos mitos da nacionalidade e dos regionalismos que legitimaram o racismo ou o silenciamento de populações negras, é preciso reconhecer que muita gente negra reagiu a tudo isso, também escrevendo outras histórias. 

 

Assista ao vídeo do historiador João Paulo Lopes no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira do pós-abolição e avaliar os seus resultados).

 

Ensino Médio: EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual).

João Paulo Lopes

Doutor em História/UERJ, graduado e mestre em História/UFMG; pesquisador visitante da Boston University/EUA; professor do IFSULDEMINAS; E-mail: [email protected]; Instagram: @joao.do.caminhao

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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