No fio de Maria Navalha: mulheres negras, liberdade e Carnaval

Nota pós-publicação: a autora da música “To nem aí” é Luka e não Kelly Key, ao que tudo indica pelas fotografias disponíveis uma mulher negra. Uma compositora da qual nunca mais ouvimos falar… Agradeço a Giovani Rocha pela informação.

Por Giovana Do Preta dotora

Entre uma infinita agenda de atividades, dentre elas a conciliação das férias de verão (um verão chuvoso e duvidoso!) do Peri e do Álvaro com o trabalho pós-greve na UFRJ, tenho tido vontade de escrever sobre três temas: 1. “Por que mulheres estrangeiras se indignaram TANTO com o vídeo da Globeleza?”; 2. Por que Viviane Araújo causou no ensaio técnico do Salgueiro fantasiada de Maria Padilha? e 3. Por que Val, “a empregada doméstica de Que horas ela volta é vista como fantasia na Europa?”.

E hoje, nas poucas horas que bravamente conquistei para ficar a sós com meu laptop, comecei a pensar que, apesar de aparentemente díspares, sob um ponto de vista feminista interseccional, os três temas articulam-se ao trazerem para o centro da reflexão as mulheres negras e nossas experiências e representações ao longo da história. Muitas têm sido as reflexões sobre os lugares que ocupamos no Carnaval carioca. Fato inegável é que dos anos 1980 pra cá temos perdido cada vez mais os postos de rainha, madrinha de bateria e musa de escolas de samba. Perdemos.

Perdemos, principalmente, para mulheres brancas que ocupam espaços de visibilidade e prestígio na grande mídia. Menos do que citar exemplos dessa “substituição”, um preterimento interseccional – racista, classista e machista – sim, machista, pois não vamos esquecer que a  gestão da maioria das Escolas de Samba S.A. é feita por homens brancos, preocupa-me refletir sobre as ambiguidades em torno das representações de mulheres negras no “maior espetáculo da terra”. Seguindo as pistas de Petronilha Silva de que não somos apenas informantes, mas “agentes de conhecimento”, sempre me vejo dividida quando interpelada sobre o que eu acho da Mulata Globeleza.

Mulata GlobelezaErica Moura, vencedora do concurso Globeleza 2016

Estes dias lembrei que na adolescência meu sonho era ser Globeleza, pois, certamente, foi a primeira vez que vi uma mulher negra ser tratada na Tv como “bonita”. O BELEZA atribuído a Valéria Valenssa seduzia-me mais do que o GLO. Passados mais de vinte anos (a primeira edição é de 1991) a chama desse desejo segue se alastrando e inflamando o coração de milhões de meninas negras, sejam elas as que se inscrevem no tal certame ou as que apenas o acompanham, sonhando que ali podiam estar “de bem com a vida”. É doloroso pensar e constatar que amulata – categoria historicamente construída à custa da violência sexual de homens brancos contra mulheres negras – mantenha-se como um sonho de consumo “nosso” por sucessivas gerações. Isso tem a ver com o racismo, um ismo violento, opressivo e desagregador que não fomos nós que inventamos. Por outro lado, acredito que as “imagens controladas”, produzidas dentro de sistemas de opressões múltiplas, podem ser subvertidas e ressiginificadas à luz das experiências das sujeitas afetadas por tal sistema. Para muitas de nós a Mulata Globeleza pode representar a ascensão social (cruelmente temporária), o prestígio e a visibilidade a partir do lugar de mulheres negras. O antropólogo Clifford Geertz fala que os conceitos são “circulantes”. Seus sentidos movimentam-se a depender dos contextos e acho que o caso da GLO-BELEZA é um bom exemplo sobre andar, transitar, atravessar definições estáticas e unilaterais. Onde mais observamos mulheres negras representando um sentido de beleza GLOBAL? É claro que o global é metafórico e alusivo a toda podridão representada pela TV Globo, Fundação Roberto Marinho e demais representantes da milícia televisiva. Mas isso coexiste com a autonomia para construção de nossas subjetividades. A fala de Monique Eleotério, publicada em sua linha do tempo no Facebook, é inspiradora:

Dia 19/01 – Dia do Passista

Confesso que tô com um aperto enorme no coração, afinal esse ano eu não desfilo. Mas não dá pra ignorar. Foi pouco tempo se comparado a lindas e longas trajetórias que conheço, mas o suficiente pra mudar a minha vida. Ser passista é honrar a herança preta de vibrar amor e energia através da dança. É levar no corpo toda a garra e dedicação por uma bandeira. É ter orgulho de representar, de defender e de inspirar uma comunidade. É uma mágica, uma felicidade e uma superação que não se explicam. É desses mistérios e encantos ancestrais que serão eternos, porque ajudam a nos manter de pé e a levar alegria aos nossos. Parabéns a todas e todos. Em especial aos passistas da minha Império Serrano, minha paixão.

Monique Eleotório

Ao centro, Monique Eleotório, passista do GRES Império Serrano, na companhia das demais passistas da escola.

Nossos passos vêm de longe. Nossa autonomia precisa ser respeitada. Nossos saberes reconhecidos. O sucesso da Mulata Globeleza assim como a valorização do trabalho das passistas de escolas de samba precisam ser interpretados de forma intersectada com as condições marginais em que vivem a maioria das mulheres negras deste país e do mundo. Boa parte de nossa pretinhosidade está: concentrada profissionalmente em atividades como o trabalho doméstico, que apenas em 2013 foi reconhecido como profissão, diga-se de passagem, com muito custo. Gerindo famílias sozinhas. Ocupando os mais baixos índices de escolaridade. Desatendida pelas políticas públicas. Desempregada. Não reconhecida pela sua/nossa intelectualidade. Independente de nossos espaços de atuação e conquistas individuais, nós, mulheres negras somos obrigadas a provar, diariamente, que somos guerreiras, fortes e que podemos ser igual às outras (brancas). Nesses e em outros sentidos, ser uma Mulata Globeleza ou passista de escola de samba pode, de forma ambígua/circulante, remeter-se a um signo de libertação e não de submissão. De novo, isso dependerá das experiências de cada sujeita. Não me vejo no papel de juíza de Globelezas,misses, funkeiras, passistas, rainhas de bateria, como corriqueiramente costumamos ver em críticas superficiais, construídas a partir do não reconhecimento de privilégios, especialmente por parte de feministas brancas. Sinceramente, como diria Kelly Key, “tô nem aí” para os pontos de vista de mulheres europeias sobre a Mulata Globeleza. E também acho muito estranho que os mesmos europeus que produziram barbáries como o holocausto, o tráfico de escravos e o colonialismo no continente africano tenham descendentes que ficam tão indignados e surpresos achando que a Val de Que horas ela volta? é uma “fantasia”. Really? Isso mostra o quanto o Norte desconhece as realidades vivenciadas no Sul do Globo Terrestre. E desconhecer é um privilégio para muito pouca gente. Para encerrar, ainda sobre Carnaval e feminismos interseccionais, merece atenção a maneira pela qual Viviane Araújo foi ovacionada pela plateia ao cruzar o sambódromo no domingo, 24/01/2016. Vivi, apelido pelo qual a rainha de bateria do Salgueiro é carinhosamente chamada por seu vasto público, que inclui muitas mulheres (fato raro, uma vez que o machismo tem conseguido gerar muitas disputas e competitividades entre mulheres) “riscou o chão” fantasiada de ninguém menos do que Maria Padilha.

Vivi Araujo pombagira 2

Viviane Araújo fantasiada de pombagira à frente da bateria do Salgueiro no ensaio técnico de 24/01/2016.

“É de arrepiar” o número de compartilhamento das imagens e vídeos da atriz. Os gritos, sorrisos e aplausos – ao vivo e nas redes virtuais para a pombagira do momento contribuem para manter nas margens da história mulheres negras como Cris Alves. Embora historicamente os holofotes para brancas e negras sigam desiguais, dentro e fora da passarela, a Malandra Maria Navalha e sua performance são auto-explicativas do porque centenas de mulheres negras como Monique e a própria Cris orgulham-se de representar as comunidades as quais pertencem através do corpo e da dança. Reduzir passistas a objetos de sexualização e exotismo é desconsiderar seus agenciamentos na criação de sentidos positivos do que é ser mulher (es) negra (s). Como feminista interseccional, pergunto-me: qual o lugar da branquidade no sucesso conquistado por Vivi Araújo? Será que Cris Alves ou outra mulher negra que bailasse com a bateria conquistaria tantos aplausos? Arrisco dizer que no país em que vivemos, no qual a violência contra religiões de matrizes afro-brasileiras fere e mata crianças e adultos diariamente, uma preta “indisfarçável” vestida de pombagira teria grandes chances de ser agredida no sambódromo. Já que o papo é religioso, seríamos testemunhas de uma releitura do apedrejamento de Maria Madalena, a “prostituta-pecadora”, descrita em minúcias na “escritura sagrada”. Vivi, adoro você. Te acho foda, lindona, gostosona, super autêntica e com muito samba no pé. Então isso não tem a ver contigo individualmente, mas com o privilégio racial. Um privilégio branco que não pode passar em branco. Ah! E, a Portela que me desculpe, mas este ano minha escola favorita é o Salgueiro! Fiquemos com a sabedoria oral da Malandra Maria Navalha:“Quando eu chego no terreiro eu risco o meu punhal no chão, eu sou Maria navalha sou mulher de opinião”.

Meme Que horas ela volta

(Não por acaso no centro e no fundo) as personagens Barbara e Val, respectivamente.

Referências bibliográficas

COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment, New York and London, Routledge, 2009 [1a ed. 2000].

DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: a história de três mulheres do século XVIII, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1997.

MUNANGA, Kabengele. “Algumas considerações sobre ‘raça’, ações afirmativas e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos”. Disponível em:http://www.usp.br/revistausp/68/05-kabengele-munanga.pdf Acesso: 28/01/2016.

“Por que as mulheres estrangeiras se indignaram TANTO com o vídeo da Globeleza?”. Disponível em: http://www.geledes.org.br/por-que-mulheres-estrangeiras-se-indignaram-tanto-com-video-da-globeleza/ Acesso: 28/01/2016.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. “Chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas – Situando-nos enquanto mulheres e negras”. Cad. Cedes, v. 19, n. 45, Campinas, jul.1998. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621998000200002 Acesso: 28/01/2016.

“Val, a empregada doméstica de Que horas ela volta? é vista como fantasia na Europa”. Disponível em: http://www.conexaojornalismo.com.br/colunas/cultura/cinema/val,-a-empregada-domestica-de-que-horas-ela-volta,-e-vista-como-fantasia-na-europa-29-42319 Acesso: 28/01/2016.

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