Michelle Fernandes, a dona do poder de transformar mulheres em rainhas africanas

Criadora da “Boutique de Krioula” começou a vender os turbantes que a ajudaram na transição capilar e virou uma empreendedora de sucesso.

By RYOT Studio e CUBOCC no HuffPost Brasil

CAROLINE LIMA:ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

A primeira amarração foi com um cachecol que tinha em casa. Meio sem jeito. Talvez meio tímida até. Após 24 anos, pela primeira vez lidava com seu cabelo natural, sem alisamento. Cortou bem curto. Nessa época, começou a procurar elementos que valorizassem a mulher negra e encontrou nos turbantes um grande impulso. Mas era isso. Fazia para si, com os pedaços de pano que tinha em casa. Hoje, a coisa é bem diferente. Ensina, dá workshops, faz amarrações diferentes. Vive disso – e inspira outras mulheres.

Michelle Fernandes, 35 anos, criou em 2012 a marca “Boutique de Krioula”e hoje ela vê que seu negócio vai muito além da questão da moda. “Percebi que não era só o turbante. Eu me reafirmava como mulher negra. Quando usava, me sentia mais empoderada, mais bonita, falavam que eu parecia uma rainha africana e percebi que quem comprava também. As pessoas se sentem fortalecidas no turbante, se sentem fortalecidas de estar comprando um produto de uma mulher negra, e isso foi crescendo”.

“Percebi que não era só o turbante. Eu me sentia mais empoderada, mais bonita, falavam que eu parecia uma rainha africana.”

O acessório possui uma função importante para as mulheres negras. “Ajuda muito na fase de transição capilar onde as mulheres costumam fazer um corte radical no cabelo e ainda estão inseguras com sua aparência e o turbante ajuda nesse processo”. Assim, o que começou com alguns tecidos que a ajudaram a trabalhar a autoestima se expandiu e virou o negócio da família. Tanto que em alguns meses o marido pediu demissão e também se dedica integralmente à marca – ele é responsável por toda a parte de comunicação visual e pelos desenhos dos brincos. Hoje, além dos turbantes, Michelle vende roupas e acessórios.

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A coisa aconteceu meio por acaso. Michelle estava frustrada no emprego que tinha em um escritório de arquitetura e quando foi desligada da empresa resolveu usar parte do dinheiro para comprar uns tecidos e fazer os turbantes. “Comecei a usar direto e as pessoas começaram a perguntar como eu tinha feito, onde tinha comprado o tecido e comecei a enxergar uma possibilidade de negócio”. Assim, criou a sua marca. Ela lembra que sempre teve vontade de ter o próprio negócio, mas achava que isso não era para ela.

Nascida e criada no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, Michelle é a única dos irmãos que concluiu o ensino médio. Sonhava com uma faculdade, mas engravidou aos 18 anos do primeiro filho e acabou adiando os planos. Ficava só com essa ideia de empreender, mas ainda achando algo distante de seu mundo. “Quando se falava em empreendedorismo era aquela coisa de começar com pouco e o pouco era R$ 5 mil e eu não tinha condição, achava que não era pra mim, que não ia fazer isso nunca, mesmo tendo na família alguém que sempre empreendeu”.

“Quando se falava em empreendedorismo era aquela coisa de começar com pouco e o pouco era R$ 5 mil reais e eu não tinha condição, achava que não era pra mim.”

Essa pessoa na família de Michelle era sua mãe, que além de trabalhar em uma casa de família em Moema, saia pelo bairro com seu carrinho cheio de marmitas para vender. “Vendia as marmitas dela, fazia salgado para fora, fazia um monte de coisa. Mas a gente não enxerga essas pessoas como empreendedoras. E aí eu não me enxergava também”. Mas com a “Boutique de Krioula” passou a enxergar. E aí foi atrás de fazer cursos on-line e buscou suas formas de aprimorar seus conhecimentos. “Muito do que eu sei vem na prática, testo o meu produto, fui sacando ao longo do processo, errando muito, mas cada erro a gente vai aprimorando. Teve meses que não fechava as contas, atrasava aluguel, não tinha dinheiro para comprar uma mistura, mas consegui terminar de construir minha casa, comprei um carro, soubemos equilibrar”.

O mais difícil ao longo desses anos foi lidar com essa instabilidade financeira. Entre 2016 e 2017, enfrentou a crise e precisou demitir pessoas, mas conseguiu manter a empresa aberta. E neste ano já recontratou um dos funcionários. “A questão mais difícil é empreender sem grana, sem um respiro. Cada mês é um novo começo, às cegas, você conquistando tudo de novo. Mandar as pessoas embora [na crise] foi muito desafiador, foram pessoas que me ajudaram muito e foi difícil pra mim e bate um sentimento de incapacidade, de achar que errei. Tivemos que diminuir e passamos por esse momento e no final do ano as coisas foram acontecendo de novo, pudemos chamar nosso funcionário de volta, foi gratificante”.

“A questão mais difícil é empreender sem grana, sem um respiro. Cada mês é um novo começo, às cegas, você conquistando tudo de novo.”

E isso tudo ela concilia com a criação de seu filho de 14 anos e da caçula, de dois. Apesar das dificuldades com a vida de empreendedora, está segura da escolha que fez e do exemplo que dá para os dois. O mais velho oferece ajuda nos períodos de grandes feiras em que o trabalho aumenta bastante e a pequena cresce com outra referência em casa. “É gratificante ver ela tenta amarrar no cabelo dela e eu não tive essa referência porque minha mãe não tinha, mas minha filha tem e vai crescer bem e segura com o corpo dela, com a cor dela, com o cabelo dela e vai fazer suas opções ciente do que ela é”.

Atualmente, os negócios voltaram a crescer. O espaço de produção em sua casa já está pequeno, as vendas pela internet só aumentam e Michelle começa a sonhar em mudar para um lugar maior em que seja possível montar uma lojinha e o seu ateliê. Além disso, realiza vendas para o Brasil inteiro e possui revendedoras nos EUA, Angola e Portugal.

CAROLINE LIMA:ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL

“Muito do que eu sei vem na prática, fui sacando ao longo do processo, errando muito, mas cada erro a gente vai aprimorando. Teve meses que não fechava as contas, atrasava aluguel.”

Por causa disso, Já há algum tempo é chamada para realizar palestras e contar sua história de sucesso – categoria que demorou um pouco para abraçar. “Pensava que [não era um sucesso porque] eu não estou rica [risos]. Mas fui desmistificando e vendo que é de sucesso sim. Estou há 6 anos empreendendo no Brasil sem grana, nunca fiz empréstimo no banco, e continuo aqui empregando pessoas, empoderando pessoas…é uma história de sucesso”.

Um sucesso que começou com o olhar para si mesma. Ela lembra que sua frustração como funcionária era grande por não se sentir confortável naquele ambiente, não se sentir confiante para andar e se vestir do jeito que queira, para ser realmente a mulher que é. E foi como empresária que ganhou essa força. “Não tinha ideia que empreender também me traria essa possibilidade. Hoje posso andar como eu quiser, tem duas semanas que raspei o cabelo, não devo satisfação para ninguém e estou bem mais livre. Isso foi uma coisa que mudou muito”.

O poder que começou a perceber que tinha com a ajuda daquele pedaço de pano. Mas como ela mesma disse, não era só um turbante. “Não é só um tecido, a mulher está resgatando uma mulher africana que foi trazida para o Brasil e ali resgata os ancestrais, se sente mais poderosa, vai chegar bem nos ambientes que ela for, mais segura, se reafirmando como mulher negra. Tem muita coisa por trás”.

É o resgate da rainha que tem dentro de si. Cheia de força.

 

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