A minha banda favorita

Eu achava que a vida de colunista do caderno da cultura seria muito mais glamourosa

Quando é que finalmente alguém vai me perguntar qual é a minha banda favorita? OK, eu não sou nenhuma especialista em música, não toco nenhum instrumento, não canto, não sou o Nelson Motta, e então, teoricamente, essa não é uma pergunta importante. Mas esse não é o caderno de cultura? Não é aqui que os grandes pensadores da cultura do país, brasileiros ou radicados, escrevem desde que este jornal é jornal sobre todas essas coisas que nós mesmos produzimos?

por Ana Paula Lisboa no O Globo

Então por que ninguém nunca me perguntou qual é a minha banda favorita?

OK, eu também não sou a Zélia — que, aliás, escreveu na última sexta “A beleza da flor”, uma carta linda pra o Arlindo Cruz. O poeta infelizmente continua hospitalizado. Uma vez eu chorei ouvindo “Meu lugar”, e olha que eu nem sou de Madureira.

É isso, esse é um bom motivo para me perguntar “Ana, qual a sua banda favorita?”: a música me emociona. E suponho que seja por conta da falta de perguntas como essa que não ganhe ingressos para ver Strokes ou The Weeknd no Lollapalooza. Eu achava que a vida de colunista do caderno da cultura seria muito mais glamourosa. Talvez eu precise voltar a ter um blog, quem sabe até um canal no YouTube, e assim os ingressos e presentes cheguem mais rápido.

As pessoas gostam de me fazer perguntas difíceis, profundas, como: onde você acha que o conceito de “literatura afro-brasileira” poderia ser empregado de forma adequada ou justa?

Eu juro que achei que aqui poderia escrever sobre o meu disco favorito do Raça Negra, sobre como o álbum “O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui”, do Emicida, mudou a minha vida, ou sobre a primeira vez em que ouvi a ópera “Carmen”. Fred Coelho me “roubou” um tema escrevendo sobre rap e Rincon Sapiência neste mês. E Marcus Faustini em janeiro escreveu sobre “Deu onda”.

Ninguém nunca me perguntou nada sobre música.

E, sendo este o caderno em que podem ler nosso horóscopo, aqui onde se pode falar de “Big Brother Brasil” sem pudor, aqui onde a novela ainda é patrimônio nacional, eu achei que me fariam perguntas mais fáceis do que “como é ter os patrões da sua mãe, empregada doméstica, lendo sua coluna?”.

Ou sendo também este o caderno em que os bonequinhos se levantam e aplaudem, achei que me fariam perguntas mais simples do que “como é que você se sente sendo mulher, negra e de periferia e escrevendo no jornal O GLOBO?”.

Não, ninguém nunca me perguntou qual é a minha banda favorita…

Ah, e por falar neste caderno, hoje Conceição Evaristo, na minha opinião a melhor escritora brasileira viva, receberá mais que merecidamente o prêmio Faz Diferença na categoria Segundo Caderno/Prosa.

E, por falar em mulher preta, outra mulher negra que escreve aqui, Flávia Oliveira, também se questiona o porquê de nunca ser chamada para falar sobre viagens ou sapatos, dois assuntos que ela ama e sobre os quais falaria muito bem. Aliás, ela anunciou que, a partir de amanhã, sua coluna passa a ser na editoria Sociedade.

Minha banda favorita se chama The Internet. Nosso caso de amor começou quando eu fuxiquei o que os amigos estavam ouvindo no Spotify, e lá estava ela, Syd, a vocalista com a voz mais excitante dos últimos tempos. A banda se formou em pleno extinto Myspace, em 2008 (eles só tinham 15 anos!), e lançou o primeiro álbum em 2011. Em 2016, o disco “Ego death”, terceiro da banda, concorreu ao Grammy na categoria melhor álbum urbano. Desde então, a música “Special affair” ocupa lugar na minha playlist e no meu coração. Syd acaba de lançar um álbum solo e, se fosse de vinil, certamente estaria arranhado. Nessas horas eu queria ser o Nelson Motta e ter mais adjetivos, mas realmente só sei sentir.

Além disso, eu queria também responder sobre a minha novela mexicana favorita (“Rubi”), sobre o meu gosto por cinema francês e por ficção científica, sobre Nova York ser a minha cidade favorita no mundo e a minha certeza de já ter vivido lá em uma outra encarnação. Eu queria contar que vou abrir um brechó, que vou me mudar em breve e também que voltei a tomar calmantes fitoterápicos.

Me perguntem outras coisas, aliás, me peguntem sobre tudo.

Eu queria ser como Cora Rónai, mas, em vez dos gatos, eu falaria sobre os meus cachorros e sobre as cinco crias que Amora deu. Sabia que eu tenho um cachorro autista?

+ sobre o tema

bell hooks: O legado da maior pensadora do feminismo do século 21

“Nós, mulheres negras, que defendemos a ideologia feminista, somos pioneiras. ...

Polícia investiga mortes em série de mulheres em Goiás

Uma sequência misteriosa de 12 assassinatos de jovens mulheres...

Uruguai contabiliza 200 abortos após um mês da entrada em vigor da lei que legaliza prática

As autoridades do Uruguai contabilizaram 200 abortos no primeiro...

Por que elas continuam com seus agressores?

O roteiro é recorrente: sempre que uma mulher é...

para lembrar

Quem são as mulheres negras na política?

Na escola e na universidade, junto as colegas costumava...

Vamos falar de outras feminilidades: Se não sou uma mulher?

"Se não sou uma mulher" . Essa frase tem...
spot_imgspot_img

Joyce Ribeiro será nomeada embaixadora de Cidade Velha, em Cabo Verde

A apresentadora da TV Cultura Joyce Ribeiro será nomeada a embaixadora no Brasil para a cidade de Ribeira Grande, em Cabo Verde. Mais conhecida como Cidade Velha,...

Liniker é o momento: ‘Nunca estive tão segura, não preciso mais abaixar a cabeça. Onde não couber, vou sair’

É final de inverno em São Paulo, mas o calor de 33 graus célsius não nega a crise climática. A atmosfera carregada de poluição...

Homenagem nos EUA marca o resgate internacional de Carolina Maria de Jesus

Meio século depois de ser traduzida para o inglês, Carolina Maria de Jesus voltará a ser resgatada no plano internacional. Neste mês, eventos vão...
-+=