Mobilizações de professores negros em Salvador na Primeira República

Em 16 dezembro de 1912, a localidade do Politeama, no centro de Salvador estava movimentada com a presença de estudantes, professores, professoras, jornalistas, autoridades e o público em geral que prestigiavam a abertura da exposição anual de trabalhos escolares do ensino primário público da cidade. O intendente municipal (o prefeito daquele tempo) estava presente compondo a tribuna junto com outras autoridades e o professor Vicente Ferreira Café. Vicente Café era um homem negro, um docente influente, que tinha como característica o bom manejo das palavras e sua oratória. Na ocasião, ele figurava como representante do professorado e fora convidado para proferir um discurso que contemplasse aquele momento festivo.

Professor Vicente Ferreira Café. Fonte: A Tarde, 19 de junho de 1924, p.1.

O professor Café em seu discurso elogiou a iniciativa da intendência, tratou sobre o trabalho desenvolvido pela categoria, lembrando que os professores eram os formadores do futuro da nação. Não ficou somente nisso. Falou ainda sobre a importância da educação ao afirmar que “um povo sem instrução não é povo; é um acervo de seres sem classificação moral, vivendo vida de protozoários, limite entre o ser homem e o ser fera”. Queixou-se também das más condições de trabalho afirmando que as “escolas são realmente muito vazias, muito nuas: o que nela existe são bancos toscos, muitos deles desconjuntados, quebrados e assim mesmo adquiridos ou por empréstimo a vizinhança, ou à custa do pequeno, do minguado vencimento que mal chega ao professor”.

Vicente Café assinalava dois problemas persistentes que acompanharam o ensino primário público na cidade: a falta de estrutura e o atraso nos pagamentos dos e das docentes. A falta de estrutura foi matéria recorrente em jornais que circulavam na cidade que destacavam as escolas improvisadas em imóveis não destinados para esse fim. Muitas delas funcionavam em sótãos, subsolos, em casa de paredes úmidas e rachadas e até próximas a depósitos de carvão. Em relação ao mobiliário, havia relatos de crianças que levavam os seus bancos para as escolas, uso de paredes como encosto e até caixas de querosene como bancos. Quanto aos vencimentos do professorado, a situação era dramática. Os atrasos chegavam a quase dois anos e ainda tinha a situação curiosa que ao professor cabia o pagamento do aluguel do imóvel onde estava instalada a escola. O professor recebia uma ajuda de custo para pagar a locação, porém, como os atrasos eram constantes, muitos professores enfrentavam a situação de despejo do imóvel que servia como escola e muitas vezes como lar. 

O professorado municipal, como eram chamados os e as nobres docentes, viviam um paradoxo. Nos discursos das autoridades e da imprensa eram descritos como “obreiros do futuro da nação”, mas no dia a dia exerciam suas atividades com muita precariedade. Após 1912, a cidade de Salvador enfrentou grave crise financeira por conta das más gestões municipais, endividamento acima da sua capacidade e a baixa arrecadação. A categoria amargou as consequências dessa situação com acúmulos de atrasos em seus salários. Entre os anos de 1916 a 1918, a cidade de Salvador vivenciou um período de desabastecimento e carestia, o que provocou intensa agitação social. Foi nesse contexto que em janeiro de 1918 o professorado municipal decidiu por algo inédito: não reabriu suas escolas para o início do ano letivo e declarou greve.

 

Alguns professores do ensino primário público municipal de Salvador. Fonte: A Tarde, várias edições de 1918.
Convite da comissão de greve. Fonte: Jornal Diário da Bahia 19 de fevereiro de 1918.

À frente daquele movimento estava o professor Café juntamente com outros professores negros e de destaque na cidade, como Cincinato Ricardo Pereira Franca, homem de histórico abolicionista, diretor do Grupo Escolar Rio Branco e um incentivador do curso noturno para trabalhadores. Além de Franca, também fez parte do movimento os professores Possidônio Dias Coelho, Francelino de Andrade, Presciliano Leal, Aloisio Coelho, Jacyntho Tolentino Caraúna entre outros. As professoras também fizeram parte, como Jovina de Castro Sena Moreira, Emilia Lobo Vianna, Jesuína Beatriz de Oliveira. As mulheres eram maioria no professorado municipal e estavam a frente de mais de 80% das escolas. A participação das mulheres no movimento de 1918 foi intenso com o envio de cartas aos jornais, telegramas para autoridades na capital federal e na coordenação das reuniões do professorado para decidir as ações da greve.

Logo após o início da greve, um acontecimento criou um tumulto entre o grupo. O professor Isauro Coelho protestou de forma acintosa contra o Intendente Municipal e foi punido com uma suspensão. Esse ato da intendência provocou mobilização da classe que se manifestou contra a punição. O fato fortaleceu a solidariedade entre os professores que estavam no movimento e motivou outros a aderirem a paralisação. A imagem anterior não deixa dúvidas sobre a afrodescendência do professor Isauro Coelho.  

O professor Vicente Ferreira Café dirigiu carta ao jornal A Tarde, manifestando-se contra a punição dada ao professor Isauro Coelho e culpando a intendência pela situação vivida pelo professorado. Segundo ele, em razão da falta de pagamento dos salários, os docentes tinham que recorrer a agiotas, faltar com seus compromissos financeiros e viver ameaçados de despejo em suas casas e escolas. Em outra carta publicada no jornal Diário da Bahia, demonstrou a sua solidariedade ao colega, tratando-o de “co-irmão pela sorte” e reafirmou as denúncias proferidas pelo professor Aloisio Coelho referente ao uso, para outros fins, da sexta parte da renda que deveria ser destinada à instrução municipal e criticou os administradores do município por não cumprirem com o seu dever.

Outros professores também se manifestaram, a exemplo de Presciliano Leal, inspetor de ensino que enviou uma carta ao jornal A Tarde. O inspetor assumiu-se contrário à punição e se solidarizou com o colega apesar de declarar ser ele um desafeto seu. Para o professor Leal, as motivações e reivindicações do professorado estavam acima das questões pessoais. A professora Jovina Moreira, professora negra, também se manifestou solidariamente em apoio ao professor Isauro e conclamava a suas colegas para não abandonarem o movimento. 

A solidariedade do professorado demonstrada a partir do ocorrido com o professor Isauro Coelho não deve ser relacionada somente a esse fato. Os professores costumavam trocar experiências entre si. As escolas estavam espalhadas por todos os distritos da cidade e algumas escolas eram próximas umas das outras. Não é difícil imaginar que os professores circulassem pela cidade, se encontrassem e possivelmente conversassem sobre sua situação. É razoável também supor que muitos tenham sido contemporâneos da Escola Normal, a instituição de formação de professores no estado da Bahia.

O professorado municipal reunia-se frequentemente em eventos como as Conferências Pedagógicas (1913, 1914, 1915). Nesses eventos eram apresentadas e discutidas as teses relacionadas à profissão. Ao verificar a comissão de organização da conferência de 1913, encontramos os nomes dos professores Possidônio Coelho, Cincinato Franca, Francelino Leal e Vicente Café, este como apresentador de tese. Sobre a predominância masculina nas comissões é preciso destacar que, sendo as mulheres a ampla maioria entre o professorado municipal, foi persistente a prevalência dos homens nos cargos de destaque como a diretoria de ensino, as comissões das conferências e a até a comissão de greve. Mesmo com o predomínio feminino no ensino primário público eram os poucos homens professores que ocupavam os cargos de representatividade do grupo profissional. O professorado municipal refletia a condição de uma sociedade machista do seu tempo em que aos homens eram reservadas as posições de influência política e social, cabendo às mulheres o papel coadjuvante no lar e no trabalho.

Mesmo com a desproporção representativa, essas mulheres e homens interagiram, leram textos um dos outros, dividiram organizações de eventos e manifestaram um comportamento de classe. A greve de 1918 foi a consequência da organização de um grupo que resolveu se manifestar contra a precariedade de seu trabalho. 

A professora Emília Lobo Vianna ao redigir documento direcionado à intendência municipal listou três condições para o fim do movimento: revogação imediata da punição do professor Isauro Coelho, pronto pagamento dos salários atrasados e respeito ao professorado. A greve durou nove meses, entre janeiro e setembro de 1918. A intendência, depois de idas e vindas e muito desgaste político, iniciou o escalonamento de pagamento do professorado e retirou a punição contra o professor Isauro Coelho.

Anos mais tarde, em 1923, o professor Café lutava para receber vencimentos atrasados, utilizando-se de Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça da Bahia. Em seu processo, estavam anexadas notas de cobrança do açougue, padaria e mercearia com dívidas altas, o que deixava claro que, após não poder recorrer mais ao fiado, só restava ao professor a justiça. Após o governo recorrer no Tribunal do estado, o Habeas Corpus foi julgado procedente pelo Supremo Tribunal de Justiça. É importante registrar que o professor Café iniciou a sua trajetória no magistério em 1903 e se aposentou em 1935. Esse período sugere a necessidade de aprofundar pesquisas sobre a sua vida, assim como de outros professores e professoras negras que se destacaram na educação baiana, principalmente além de suas salas de aula.

Em texto escrito na edição comemorativa do Diário Oficial da Bahia, referente ao centenário da Independência da Bahia, o professor Alberto de Assis abordou o histórico da instrução primária daquele estado desde os tempos coloniais até as primeiras décadas da República. Lembrando-se dos formados pela Escola Normal, Assis relaciona alguns alunos proeminentes. Destaca os da turma de 1898, que contava com Roberto Correa e Vicente Ferreira Café, que o autor define como “esforço e o caráter conjugados”. Ao escrever as suas memórias do tempo de criança, quando iniciou os seus estudos, o professor Álvaro Zózimo lembrou que houve um trio de professores famosos formado por Possidônio Dias Coelho, Jacynto Caraúna e Vicente Ferreira Café.

Em 1918 a Revista Bahia Illustrada trouxe um texto em homenagem aos mestres da infância na Bahia. Entre os lembrados, estavam os professores Cincinato Franca, Possidônio Dias Coelho, Emília Lobo Vianna e Vicente Café. Ao tratar do professor Café, o autor lançou a pergunta “Quem não o conhece, quem o não admira?”. É preciso conhecer mais. 

 

Assista ao vídeo do historiador Fabiano Moreira no Acervo Cultne:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

 

Ensino Fundamental: EF03HI12 (Comparar as relações de trabalho e lazer do presente com as de outros tempos e espaços, analisando mudanças e permanências); EF09HI07 (Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes); e EF09HI01 (Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil).

Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país)

 

Fabiano Moreira da Silva 

Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia; E-mail: [email protected]; Instagram @fabianomdasilva

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

 

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Ainda que a reflexão neste artigo seja feita a partir de algo bastante pessoal, acredito que também tenha sido vivenciado por outras e outros...
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