A Justiça do RJ já registrou um aumento de 50% de casos de violência doméstica, e a comunicação é fundamental para proteger as mulheres
Por Mônica Mourão, da Carta Capital
Fiquem em casa. A campanha pelo isolamento social devido à pandemia do novo coronavírus está na TV, na internet e é compartilhada por artistas e anônimos. O Instagram criou um selo em que o desenho de uma casa se mistura com o de um coração, e assim é possível assistir aos “stories” de quem está resguardado. Porém, o que muitas vezes escapa aos que têm o direito à moradia digna é que o ambiente doméstico não é um espaço de amor para todo mundo. Sequer um espaço seguro.
Campanhas informativas, aplicativos para celular e documentos cobrando do Estado medidas protetivas às mulheres são algumas das iniciativas que ganham força neste contexto para combater e denunciar as situações de violência. A Justiça do Rio de Janeiro já registrou um aumento de 50% de casos de violência doméstica desde o início da quarentena. Segundo o “Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil” (2013), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as mulheres se sentem menos seguras no lar que os homens: 77,2% das mulheres e 80,2% dos homens disseram se sentir protegidos no espaço doméstico. O caso mais grave de agressão, o feminicídio, também acontece principalmente dentro de casa.
Segundo o Mapa da Violência de 2015, quase metade do assassinato de homens acontece na rua. No caso das mulheres, a proporção é de 31,2%, aproximando-se bem mais do número de homicídios nos domicílios: 27,1%. Para mulheres trans e travestis, muitas vezes a casa também é sinônimo de perigo. É o que reflete o Mapa da Violência de Gênero, iniciativa da Gênero e Número. Entre 2014 e 2017, 49% das agressões a esse grupo ocorreram no ambiente doméstico.
Há uma diferença brutal entre brancas e negras. De acordo com o Atlas da Violência de 2019, o número de feminicídios aumentou 1,7% entre mulheres não negras, de 2007 a 2017. No mesmo período, cresceu 60% entre as negras. Em média, foram assassinadas 13 mulheres por dia no ano de 2017.
Dentro de que casa?
“O caminho da salvação para a multidão emancipada do povo negro […] consiste, como todas as pessoas negras logo descobriram e sabem, em escapar da servidão doméstica”. Assim já dizia o historiador, sociólogo e ativista estadunidense W. E. B. Du Bois (1868-1963), citado por Angela Davis quando ela fala da necessidade de emancipação das mulheres negras.
Ainda hoje, num Brasil também de passado escravocrata, às mulheres negras ainda cabe a maioria do trabalho doméstico remunerado. O “Dossiê Mulheres Negras” mostra que elas representam 57,6% das pessoas que exercem esse tipo de atividade. A “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2018”, do IBGE, aponta que os serviços domésticos representam os rendimentos médios mais baixos entre as atividades laborais no Brasil. Correspondem a cerca de 40% do rendimento médio total. É também a atividade com maior disparidade em relação à distribuição de homens e mulheres: exercida por 5,8 milhões de mulheres e 475 mil homens.
As mulheres negras estão, assim, muitas vezes dentro de casa. Mas não da própria casa. A primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi de uma mulher que trabalhava como empregada doméstica. De acordo com matéria da Agência Pública, o médico que atendeu a vítima, Cleonice Gonçalves, de 63 anos, disse que informações sobre o contato dela com a patroa seriam cruciais para o tratamento adequado de Cleonice.
Apesar de as mulheres acima de 60 anos ainda serem minoria no trabalho doméstico, a proporção dessa faixa etária mais do que dobrou de 1995 a 2018, segundo a publicação do Ipea “Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI” (2019). A pesquisa aponta que o aumento foi de 3% para mais de 7%. Essa idade corresponde ao grupo de risco do novo coronavírus. Em sua maioria (80%), as domésticas têm entre 30 e 59 anos.
A chamada PEC das Domésticas, de 2013, estabeleceu jornada de trabalho de 44 horas semanais e pagamento de hora extra, entre outras medidas. Seria o fim de um regime de trabalho desregulado, que mantinha mulheres negras, muitas vezes, numa situação de servidão ou semiescravidão. Mas o verbo no passado não faz jus à realidade. Segundo a Síntese dos Indicadores Sociais, as taxas mais elevadas de informalidade entre as mulheres ocorrem nas atividades de serviços domésticos (71,2%).
Mulheres também são as que mais fazem essa atividade de maneira não remunerada. Conforme dados da PNAD Contínua (2017), elas dedicavam, em média, 20,9 horas semanais a afazeres domésticos ou cuidados de parentes, nas suas próprias casas ou na de familiares. Quando se tratam dos homens, a média cai para 10,8 horas. Em um país em que pouco mais da metade (64,3%) dos domicílios têm máquina de lavar roupa, pode-se imaginar o peso do trabalho doméstico, que aumenta durante a quarentena, já que uma das maneiras de combater o coronavírus é o reforço da limpeza dos ambientes.
Isoladas, mas não sozinhas
A publicação “Domésticas Conectadas” (2018), do InternetLab, mostra o uso que um grupo de empregadas domésticas de São Paulo faz da internet e de outras tecnologias. A pesquisa-ação buscou, por exemplo, compreender os dados da TIC Domicílios de 2016 que dizem que as domésticas buscam mais informações sobre saúde na internet que a média nacional (42%). A diretora do InternetLab, Mariana Valente, conta que “elas falaram muito em não confiar nas informações que os médicos passam para elas, em conexão com a precariedade do serviço de saúde e falta de atenção por parte dos médicos”.
Três em cada dez empregadas domésticas não têm internet em casa, sendo que 64% delas usam pacotes de dados pré-pago. Durante a pandemia, a Anatel solicitou às operadoras que incluam na gratuidade o aplicativo “Coronavírus – SUS”. Mas, em geral, o comum às classes D e E é ficar reféns de Whatsapp e Facebook quando os dados acabam. Os 60% das domésticas que acessam notícias acompanham principalmente o que é publicado no Facebook, sendo que o acesso a sites de jornais não é frequente. Elas também confiam mais nas informações vindas da TV, jornais ou revistas. Diante deste cenário, impossível não mencionar o discurso genocida do presidente da República Jair Bolsonaro em rede nacional na noite de terça-feira 24 de março. Na sequência, o presidente assinou um decreto incluindo novas atividades na lista de serviços essenciais, aqueles que não podem ser interrompidas durante a pandemia. Entre elas, estão as atividades religiosas.
Atentar para os perigos do espaço doméstico não significa reiterar a irresponsabilidade dos que defendem que as pessoas saiam de casa. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), apesar de todas as adversidades, essa ainda é a medida mais adequada para o combate à pandemia. Porém, a própria OMS também tem dados que confirmam o perigo da casa para as mulheres: 70% delas já sofreram violência de seus parceiros em algum momento da vida. São os familiares, como também pais e padrastos, os maiores agressores de mulheres. Num contexto que favorece essa violência, os meios de denúncia e amparo às vítimas também precisam ser adaptados, como todas as demais atividades nesse período de quarentena.
A Articulação de Mulheres Brasileiras disparou na terça-feira 24 de março uma mensagem nas redes sociais alertando para o problema das mulheres em situação de violência doméstica. A orientação é para todas e todos nós: “Se você conhece mulheres em situação de violência que estão em casa com seus agressores telefone, mande mensagem pelas redes sociais, escute, acolha e apoie”.
A ideia é ter no celular os telefones de atendimento dos serviços de emergência em cada cidade para o caso de necessidade de socorro imediato, assim como o contato de pessoas de confiança. O cenário não é animador: apenas 8,3% das cidades brasileiras têm delegacias especializadas para o atendimento a mulheres. Mas, mesmo com todas as dificuldades de denunciar e receber tratamento adequado, qualquer delegacia pode ser acionada. Para quem tem internet, o aplicativo PenhaS [https://azmina.com.br/penhas/], da revista AzMina, pode ajudar. Com um canal aberto para diálogo de forma anônima, através dele também são dadas informações sobre como proceder em cada caso e cidade.
A tendência de aumento de violência doméstica mostrada no início deste texto é mundial, conforme informações do HuffPost Brasil sobre casos em outros países, como a China. Mas a organização das mulheres também é internacional. A Feminist Alliance for Rights lançou uma chamada para que organizações e pessoas físicas assinem uma carta que demanda dos Estados que estabeleçam uma política voltada para mulheres durante o período de isolamento.
Neste momento de enormes desafios, a necessidade de solidariedade se intensifica. Seguimos isoladas, mas não sozinhas.
*Professora e integrante do Intervozes