Em 2009, as mulheres negras correspondiam a cerca de um quarto da população brasileira. Na ocasião, eram quase 50 milhões de mulheres em uma população total de 191,7 milhões de brasileiros (o número hoje já passa dos 200 milhões).
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Do total de mulheres, 50% eram negras e 49,3% eram brancas. Isso, em números, representa 600 mil negras a mais do que brancas. Como já é esperado, a maior concentração de mulheres negras acontece nas regiões Norte e Nordeste e, em menor proporção, no Centro-Oeste.
De forma geral, a população negra tende a se concentrar mais nas faixas mais jovens quando comparada à população branca que, proporcionalmente, está mais presente nas faixas mais elevadas. Podemos concluir que isso se deve aos maiores índices de violência enfrentados pelos(as) jovens negros(as) e pela maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde e infraestrutura social por parte da população negra.
O número de mulheres negras que chefiam famílias também cresceu: 51,1%. Em 2009, as famílias do tipo casal – com e sem filhos – cuja chefia era feminina, já alcançavam 26% do total daquelas chefiadas por mulheres. As famílias chefiadas por mulheres negras são maioria entre aquelas dos tipos “casal com filhos” e “mulher com filhos”: respectivamente, 52,4% e 55,2% do total das famílias de chefia feminina.
Quanto à questão da renda familiar per capita, mantém-se, de fato, um quadro de grandes disparidades. Chefes de família de cor/raça branca contam com renda familiar per capita média de quase o dobro da dos/das chefes de família de cor/raça negra. Mas não há preconceito no Brasil, né?
E a coisa fica pior ainda – não só para as negras, mas para todas as mulheres – quando analisamos os números do mercado de trabalho. Quarenta e três porcento das brancas chefes de família eram inativas e 39,2% das negras estavam na mesma condição. Este resultado apresenta pouca variação, indicando que esta reduzida participação feminina no mercado de trabalho é condição estrutural da sociedade brasileira.
Para não ficarmos limitados a dados, conversamos com quatro mulheres negras poderosas em suas respectivas áreas: a cantora Margareth Menezes, a advogada Laina Crisóstomo, a jornalista e cineasta Ceci Alves e a jornalista e blogueira Tati Sacramento.
A grande pergunta é: afinal, como é ser mulher e negra no Brasil? “É um desafio constante visto que a sociedade é machista e racista. Ou seja, desafio dobrado. A equação se torna mais complexa quando nos deparamos com o fato das mulheres negras estarem mais empoderadas, e portanto não se isolam mais nos serviços domésticos e não se submetem mais a condição de objeto sexual. Essa ‘ousadia’ da mulher negra tem desafiado constantemente os pensamentos que pararam no período pré-abolicionista. Mas o recado está sendo dado diariamente”, acredita Tati, que assina o blog É Fit.
Tati Sacramento é editora do blog É Fit
A advogada Laina, que ajuda gratuitamente mulheres vítimas de violência, endossa o coro: “Muito difícil, na verdade nunca foi fácil, somos tratadas até hoje como objetos, o machismo fundido ao racismo nos causa dor, discriminação, abandono, solidão e morte. Somos tratadas de forma diferente em tudo, seja na saúde com a violência obstétrica, seja na Justiça pela dificuldade de acessá-la, seja nos relacionamentos em que somos abandonadas e nos tornamos mais uma vezes arrimo de família, enfim o machismo e o racismo se reinventam em todos os espaços para nos oprimir”.
“Sonho com o dia em que não tenha mais que responder a esta pergunta. Em que os atributos ‘mulher’ e ‘negra’ não sejam mais vistos como um problema a ser transposto, ou uma diferença inconciliável para se obter aceitação social. Ser mulher e negra no Brasil ainda é uma distinção, mas não na melhor acepção do termo. Por exemplo, é comum você ouvir a frase ‘que negra linda!’, como se fosse uma coisa fora do normal e digna de nota você acumular as duas coisas: ser ‘negra’ e ser ‘linda’. Tipo, você não diz: ‘olha, que branca linda!’, porque é como se ser branca e linda fosse o normal, o normativo, o comum. Ou aquela velha máxima: ‘ah, se é negra, tem que se esforça o dobro’, ou seja, realçando a falta de oportunidades e jogando sobre os nossos ombros a necessidade de reverter esse quadro, como se a desigualdade fosse nossa culpa, ou como se merecêssemos estar em situação desigual. Tudo isso é muito cansativo”, observa Ceci Alves.
Margareth Menezes, por sua vez, adota um discurso mais otimista. “As pessoas estão tendo mais voz porque hoje não dependemos só da comunicação pré-estabelecida. Vejo que as pessoas estão tendo posições mais ousadas, buscando seus direitos, lutando, não existe mais aquele comodismo. Não podemos dizer que não há espaço nenhum”, afirma.
“Acho muito boa essa nova geração de mulheres negras que se posicionam. Ainda não é o ideal, mas vemos mais liderança, mais representação e isso é o começo de uma conquista”, emenda a cantora.
Desafios diários
“O desafio é não cair na armadilha que tentam criar em torno de nós e que busca tentar nos convencer de que o nosso lugar não é o lugar do respeito moral, histórico, social e estético. O tempo todo somos vítimas dessa tentativa covarde de nos convencer de que somos feias, burras e descartáveis. Mas essas dificuldades estão sendo vencidas. Estamos longe do ideal, mas a luta continuará sem dúvidas. O exemplo é o mercado da Estética que tem, ainda pouco contudo, contemplar essa parcela da população que também cuida do cabelo, da pele e que, portanto, precisa de mais de uma prateleira do supermercado”, acredita Tati.
“Ter que provar todo o tempo que sou quem digo que sou. Como advogada em toda audiência que participo tem que responder 3 ou 4 vezes que sim, eu sou advogada, isso cansa, nossa capacidade é questionada pela cor da nossa pele”, entrega Laina, responsável pelo projeto Tamo Juntas.
Para Ceci, as maiores dificuldades são “a falta de oportunidades e o preconceito atávico que quer sempre nos colocar ‘na cozinha’”. “É como se a cada dia partíssemos do zero, tendo que a cada dia lembrar às pessoas de nossas conquistas e nossos direitos. De nosso verdadeiro lugar. Veja, não estou dizendo que trabalhar na limpeza ou servindo seja indigno. Mas esta não é a nossa ÚNICA opção, não tem que ser. Falo de direitos iguais, de oportunidades iguais e de direito à escolha sobre seu destino – se você quer limpar o chão ou se quer ser médica”, afirma.
Com quase 30 anos de carreira – muitos discos e apresentações mundo afora – Margareth Menezes acredita que sua luta é igual a de outros artistas. “O que eu acho desigual é o reconhecimento”, ressalta. “Dentro do meu próprio estado querem me colocar dentro de uma regionalização que eu, graças a Deus, já ultrapassei”, pontua Maga.
Laina Crisóstomo lidera o projeto TamoJuntas
A advogada Laina busca este empoderamento através do trabalho. “Penso que estar em redes ajuda muito. Quando decidi voltar ao meu cabelo natural, ouvi histórias de outras meninas que viviam situações semelhantes as minhas e me encorajou a seguir. Não faço parte de um movimento especifico, mas de grupos no Facebook e Whats App em que mulheres se compreendem e se auxiliam. Criamos um coletivo chamado TamoJuntas, eu e mais três advogadas para assistir mulheres vítimas de violência porque entendemos que podemos mudar um pouco o mundo que vivemos fazendo a nossa parte, sabe?”.
Ceci segue o mesmo pensamento e acredita que o empoderamento é diário. “É na forma como me posiciono perante à vida, como faço meu trabalho, na postura séria e ilibada que imprimo nas minhas atividades. Passa também pelas minhas convicções políticas e humanísticas e, claro, embebe meu trabalho, seja de cineasta ou jornalista, mas, principalmente, de professora, onde eu procuro dar noções deste empoderamento a todos, não só às mulheres negras. Falando especificamente dos meus filmes, acho que Doido Lelé demonstra esse papel subversivo e vanguardista da mulher negra, que incentiva seu filho a ser o que quiser e a ir atrás dos seus sonhos, à revelia do poder castrador do pai e da sociedade”, diz.
Tati busca o caminho do estudo. “Estudando e me tornando íntima da minha ancestralidade, entendendo o quão sacrificante foram as lutas daqueles que vieram antes de mim e que para tanto preciso honrar e continuar a luta em prol das futuras gerações. Na medida que contribuo para o empoderamento de outras meninas, através de postura, provocações e demonstrações de que podemos ocupar qualquer lugar que quisermos. Não só porque é um direito, mas por uma questão de sobrevivência dessa minoria em direitos. No meu blog, canal, etc…procuro fortalecer a ideia de que podemos estar em qualquer lugar. Se não nos impusermos, passam como um trator sobre nós, como fizeram e ainda o fazem”, acredita.
Única mulher negra entre as principais estrelas da axé music, Margareth acredita que, por vezes, querem diminuir sua importância. “Mas sou tranquila. Não tenho discurso xiita em relação a nada. Acho que o ser humano é dono da sua cabeça. Temos que lutar contra aquilo que é injusto. Sou contra a discriminação racial, mas não gosto daquele discurso da vítima. Não me vitimizo diante de nada. Temos que criar dentro de nós a possibilidade de conquistar”, afirma.
Ataques racistas
Recentemente, assistimos episódios de racismo contra famosas como Taís Araújo e Maria Júlia Coutinho. Taís foi alvo de comentários racistas no Facebook no final de outubro do ano passado. “É muito chato, em 2015, ainda ter que falar sobre isso, mas não podemos nos calar. Na última noite, recebi uma série de ataques racistas na minha página. Absolutamente tudo está registrado e será enviado à Polícia Federal. Eu não vou apagar nenhum desses comentários. Faço questão que todos sintam o mesmo que eu senti: a vergonha de ainda ter gente covarde e pequena neste país, além do sentimento de pena dessa gente tão pobre de espírito. Não vou me intimidar, tampouco abaixar a cabeça”, escreveu, na época.
Já a jornalista Maria Júlia Coutinho foi alvo de comentários racistas na página do Jornal Nacional no Facebook, no mês de julho do ano passado. No Twitter, ela respondeu um comentário agressivo de um internauta com o comentário: “Beijinho no ombro”.
Margareth Menezes é a única negra entre as maiores artistas da axé music
Para Tati, a internet é uma vilã, mas também pode ser uma aliada no combate ao racismo. “Muitos se escondem atrás de perfis achando que não podem ser rastreados. Enganam-se, pois a tecnologia está cada vez mais refinada. Muito ainda se tem o que fazer. Mas estamos cada vez mais lidando com mulheres empoderadas e em todos os espaços onde estamos, a orientação é clara: ‘sofreu racismo, denuncie’. Dessa vez eles não passarão”, acredita.
Já Laina não acredita que o problema esteja na internet. “Na verdade o problema não é a internet, para mim o problema é que racistas e machistas nunca aceitaram mulheres negras em espaços de poder ou aparecendo mais do que eles. Obvio que a internet por ser um espaço de disseminação de informação de forma acelerada faz com que o ódio se prolifere ainda mais”, analisa.
Ceci crê que a internet potencializa. “Já dizia Umberto Eco: ‘As redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que antes falavam apenas em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade’. Diante da genialidade do mestre, nada mais tenho a acrescentar”, diz.
Margareth ressalta que a ação partiu de grupos orquestrados. “Queriam fazer aquele tipo de barulho, mas houve reação. Alguma coisa começa a mudar. É importante que a gente não se abata diante deste tipo de coisa, que não é mais do que ignorância”, encerra.
Ceci Alves é jornalista e cineasta premiada
Dados do Dossiê Mulheres Negras