Manu da Cuíca e Sandra de Sá serão as únicas compositoras com obras cantadas pelas agremiações do Grupo Especial em 2020
Por Renan Rodrigues, do O Globo

Elas têm que ser boas de samba. Mas só isso não basta. Precisam também vencer o preconceito, num mundo predominantemente masculino, para que suas vozes sejam ouvidas. Este ano, por exemplo, só duas mulheres conseguiram emplacar um samba-enredo nos desfiles do Grupo Especial — as outras 11 composições que vão brilhar na Avenida são de homens.
— É um ambiente marcadamente masculino. As mulheres nas escolas de samba participam, historicamente, de outros segmentos. E não é que não queiram, mas porque há predomínio masculino mesmo. Não faltam, por exemplo, sambas que exaltam belezas femininas com algumas demarcações de inferioridade que chegam a ser ridículas. Eu jamais faria um samba assim. É sempre desconfortável. Não faltam mulheres para compor, mas a gente tem que mostrar o tempo inteiro que está fazendo samba — lamenta Manuela Trindade Oiticica, a Manu da Cuíca.
Ela foi uma das poucas, que, nos últimos tempos, conseguiu romper barreiras. E em grande estilo. Este ano, é de Manu o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, que só tem duas mulheres desfilando na ala dos compositores, com 40 integrantes. No ano passado, ela também foi uma das autoras do samba campeão da verde e rosa, mas não assinou a obra.,
Sandra de Sá: primeira na Mocidade
Compositora é a primeira mulher a vencer uma disputa na verde e branco de Padre Miguel
No próximo carnaval, a Mocidade Independente de Padre Miguel vai levar pela primeira vez um samba escrito por uma autora para a Avenida. A façanha é da compositora Sandra de Sá, que faz uma homenagem a Elza Soares.
— Foi a primeira vez que disputei. Sou fã da Elza. Ela é a cultura brasileira. Com seu canto, suas atitudes, sua cor. É ser humano da melhor qualidade — diz Sandra de Sá.
A voz da experiência
Compositora de 74 do Paraíso do Tuiuti já teve quatro sambas cantados na Avenida
Com mais experiência no quesito “ganhar uma disputa de samba”, Dona Zezé, que já conseguiu levar suas composições para o desfile da Paraíso do Tuiuti, dá a receita para as mulheres que querem entrar também na disputa: não se intimidar. Ela conta que, ao contrário de outras compositoras, não enfrentou muitas complicações:
— Comigo não teve muita dificuldade porque a diretoria era legal e eu tinha muitos amigos na escola. Comecei na Tuiuti como presidente de ala, fiz fantasia durante muitos anos porque tinha ateliê. Resolvi fazer samba por curiosidade. Peguei a sinopse, perguntei como fazer e fui compor com a ajuda do meu filho Eric ( que assinou os sambas de 2004 e 2011 com ela ) — conta Zezé, com 74 anos.
A facilidade com que Dona Zezé transitou no mundo dos compositores é exceção. Na tradicional Portela, por exemplo, só um samba foi feito por uma mulher nos 96 anos da escola. O mérito foi de Cila da Portela, que, em 1990, compôs “É de Ouro e Prata esse Chão”.
Mulheres pioneiras
Dona Ivone Lara, uma das pioneiras, compôs o samba-enredo de 1965 do Império Serrano
Um dos autores do livro “Sambas de enredo: história e arte”, Luiz Antônio Simas destaca a origem masculina da ala dos compositores:
— Sem dúvida nenhuma é um universo muito masculino. A ala de compositores era o núcleo de formação das escolas. As mais tradicionais foram formadas por compositores como Paulo da Portela ( Portela ), Cartola ( Mangueira ) Mano Elói e Seu Molequinho ( Império Serrano ). Era basicamente um meio masculino, havia muito preconceito com a presença de mulher. Acho que, em certo sentido, ainda é visto como um meio muito marcado pela preponderância masculina.
Apesar de ainda ser muito tímida, a participação feminina na composição de sambas-enredo é antiga. Até onde os registros históricos permitem alcançar, o pioneirismo coube a Carmelita Brasil, compositora da Unidos da Ponte, escola de São João de Meriti que atualmente desfila na Série A. Entre 1959 e 1964, Dona Carmelita foi responsável pelos enredos e também pela composição dos sambas da escola. Ela também entrou para a história como a primeira mulher a dirigir uma escola: foi presidente da agremiação, de 1959 a 1979.
— Ela foi uma das fundadoras da Unidos da Ponte. Comentavam que ela era rígida e mandona para botar a escola na Avenida. Naquele tempo? Mulher? Tinha que ter energia para comandar — conta a sobrinha de Carmelita, Nadia Pinto Ribeiro, de 67 anos, baiana da Unidos da Ponte.
Papel importante também teve Dona Ivone Lara, a primeira mulher a vencer um samba em uma grande escola. Em 1965, ela assinou em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau os “Cinco bailes tradicionais na história do Rio”, quando a escola da Serrinha foi vice-campeã.