Museu Internacional da Mulher abre as portas em Lisboa com exposição sobre a violência doméstica

O MIMA – Museu Internacional da Mulher de Lisboa abre as portas ao público nesta segunda-feira (25) com a exposição “Meu Corpo, Minha Língua”, focada na violência de gênero em paralelo ao dia internacional para a eliminação da violência contra a mulher. A coletiva reúne trabalhos de seis artistas lusófonos que refletem sobre a condição feminina em suas obras.

Por Adriana Moysés, do RFI

Imagem da performance “Desatar Tiempo”, de Beth Moysés, com mulheres colombianas vitimas de violência doméstica. A performance foi realizada durante a primeira Bienal de Cartagena das Indias, em 2014. (Foto: DR)

Com direção artística da brasileira Katia Canton, escritora, artista, educadora e ex-vice-diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MIMA está instalado no Fórum Grandela, um espaço cultural em São Domingos de Benfica, bairro operário construído no início do século passado em Lisboa. A exposição de abertura reúne telas, desenhos, objetos, instalações, bordados, séries fotográficas e videoperformances que falam de sensibilidade feminina, identidade, corpo, paixão, intimidade, sexualidade, violência, dor, escravidão, transmissão familiar.

A jornalista portuguesa Paula Castelar, criadora do projeto, afirma que o museu vai discutir a condição feminina de várias formas, mas promover o debate sobre a violência doméstica é absolutamente essencial. “Dados do último relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas, elaborado pela União de Mulheres Alternativa e Resposta, revelam que de 1° de janeiro até 12 de novembro, tivemos 28 mortes, 27 tentativas de feminicídio e 45 crianças ficaram órfãs em Portugal por causa da violência doméstica; são números vergonhosos”, lamenta. No Brasil, os dados também são alarmantes: uma mulher é agredida a cada quatro minutos, na maior parte das vezes em casa, e o país tem a quinta maior taxa de feminicídios no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde.

Logo no início da mostra, o trabalho “Corações estabilizados em formol”, produzido com órgãos de porcas conservados em frascos transparentes, e um desenho sobre o fluxo das paixões em tons de vermelho, ambos da artista plástica portuguesa Cristina Ataíde, evocam a paixão e os sentimentos, motores da problemática do amor que pode se tornar violento.

“Corações estabilizados em formol”, da artista portuguesa Cristina Ataide. (Foto:  DR)

A paulista Beth Moysés, artista de referência internacional por seu trabalho sobre o mito do amor romântico e a violência doméstica, veio à Lisboa para a mostra inaugural. Ela exibe uma série de fotos e três videoperformances, entre elas “Desatar Tiempos”, realizada com mulheres ameaçadas de morte por seus companheiros em Cartagena das Índias, em 2014, na Colômbia. Com a experiência de quem já trabalhou com vítimas de agressões machistas em dezenas de países, a artista considera que “as mulheres só conseguem desatar os nós da dor e da violência juntas, num exercício gestual e corporal, quando descobrem uma solidariedade, que elas podem se ajudar para superar o trauma”. “A arte cura”, diz ela com entusiasmo. As transformações do feminino entre gerações é tema de outro trabalho da artista, “Entre-Telas”, no qual ela aparece ao lado de sua mãe e das filhas.

Apesar de os dados oficiais apontarem para um aumento de agressões e feminicídios no Brasil e no mundo, Beth Moysés nota alguns avanços. “Quando comecei a trabalhar com esse tema, há mais de 25 anos, era tudo vedado e velado. Hoje, os jovens estão aprendendo que a violência contra a mulher não é normal”, destaca.

A condição das mulheres negras diante de questões sociais, de gênero e etnia aparece nos trabalhos de Rosana Paulino, expoente do feminismo negro no Brasil, presente com a série “Suíte do Coração”, e da lusoangolana Mônica de Miranda. Em “Known Album”, Miranda evoca sua investigação sobre famílias de ex-escravos que são colocados juntos, em um mesmo pé de igualdade, com uma pesquisa sobre a biologia das plantas.

O olhar feminino sobre a violência de gênero se completa com contos de fadas eróticos, de Katia Canton. Mestre em Performance Studies e PhD em Artes Interdisciplinares, títulos obtidos na New York University, sua tese de doutorado articula a relação das artes com os contos de fadas. “Quando morei em Nova York e voltava ao Brasil, sempre ficava impressionada com a erotização das meninas brasileiras. Essa erotização precoce pode deflagar a violência”, alerta.

Série “cor-de-rosa” ganha nova atualidade

O único homem da mostra é o mineiro Domingos Mazzilli, que tem como temas recorrentes o feminino, o doméstico e o íntimo. Médico psiquiatra de formação, Mazzilli também estudou história da arte e abandonou a medicina para se dedicar à produção artística quando estava com 43 anos. Ele se apresenta no MIMA com uma série de obras expostas pela primeira vez em 2007, em Belo Horizonte. São bordados e lingeries antigas, dos anos 1950-1960.

O espartilho “A Esfinge”, com a frase bordada “decifra-me que eu te devoro” na altura do púbis, questiona toda a carga de erotismo, sedução e aprisionamento vividos pela mulher. Em “Regras”, anáguas e a menstruação representam esta prisão. Na toalhinha bordada “Jogo da Velha”, Mazzilli evoca a mulher madura. “Como num teste de revista, brinco com questões do universo feminino e o prontuário ginecológico”, explica.

Diante das declarações polêmicas sobre questões de gênero feitas pela ministra brasileira da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que vão totalmente contra as conquistas e a emancipação alcançadas pelas mulheres, Mazzilli diz que esta série “cor-de-rosa” ganha uma nova atualidade. Em fotoperformances, o artista mineiro também se revela em outras personagens, femininas, abordando o transgênero.

A mostra “Meu Corpo, Minha Língua” fica em cartaz no MIMA até 18 de janeiro. Outras exposições sobre temas como a pobreza, a alimentação e as mudanças climáticas já estão planejadas. “Vamos discutir o papel da mulher reverberando e conversando sobre todos esses assuntos. Este espaço vai representar as mulheres lusófonas em todas as suas esferas e não vai se restringir às belas artes ou à arte contemporânea. Vamos ter manifestações de artesanato, design. Expor desde artistas contemporâneas consagradas até movimentos de povos originários, mulheres indígenas e bordadeiras do Movimento de Atingidos por Barragens, em Minas Gerais, que fazem um trabalho lindíssimo com bordado, que é uma técnica de bordar as próprias histórias, as próprias narrativas”, destaca a curadora.

A vereadora Cristina Valério, responsável pela área da Cultura da Freguesia de São Domingos de Benfica, vê a abertura do Museu Internacional da Mulher de Lisboa como uma oportunidade única para Portugal. “Este museu é uma porta aberta. Temos a chance de promover essa ligação entre geografias diferentes pela arte”, comenta. Sobre a mostra dedicada à reflexão sobre a violência de gênero, ela é enfática: “Temos de entender por que nos violentamos uns aos outros, isso não pode continuar.”

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