Abstenções, votos brancos e nulos, somados, superaram o 1º colocado nas eleições para prefeitura em dez capitais. Em São Paulo, quase 40% das pessoas que poderiam votar não escolheram nenhum candidato. Ao todo, 3.096.304, enquanto João Dória foi eleito com 3.085.187 votos. Já no segundo turno no Rio de Janeiro, entre Marcelo Freixo (PSOL) e Marcelo Crivella (PRB), as últimas pesquisas apontam que mais de 20% pretende anular ou votar em branco.
Por Leonardo Mendes, do DCM
Camila Jourdan, doutora em Filosofia e professora na UERJ, é uma delas, e explica nessa entrevista sua opção.
Camila Jourdan estava entre os 23 ativistas presos às vésperas da final da Copa do Mundo de 2014, no escopo das tentativas de criminalização das Jornadas de Junho. Acusada por possíveis futuros atentados que nunca aconteceram, com base em um inquérito que também incriminava o filósofo russo Mikhail Bakunin (1814-1876), Camila considera o processo literatura fantástica de má qualidade.
Abaixo a entrevista:
Há quantas eleições você não vota e por quê?
Como sou anarquista desde muito jovem, meu posicionamento sempre foi o voto nulo.
Admito que na primeira eleição que o Lula venceu, eu também votei nele, não que tivesse deixado de acreditar no mesmo que ainda acredito hoje, mas como não estava muito ativa politicamente naquele momento, achei na época que era o máximo que podia fazer. Eu não me decepcionei totalmente, pois já sabia das limitações da via institucional.
Mais importante do que o ‘não vote’ é, sem dúvida alguma, o lute, o organize-se. Os anarquistas defendem o ‘não voto’ ou o voto nulo como ação política refletida, é uma consideração sobre a impossibilidade da via institucional trazer as mudanças que buscamos e, ao mesmo tempo, sobre o equívoco envolvido no peso que se coloca nesta disputa. Porque a eleição canaliza as vias de ações políticas concretas e faz parecer que a participação política democrática se resume a votar. Esta canalização é extremamente nociva.
Se pensarmos o que houve nas últimas décadas no país, veremos que a chegada de um partido de esquerda ao poder não fortaleceu a esquerda, mas a fez recuar nos espaços de luta concreta e organização. Foi isso que ocorreu com o MST, por exemplo, que recuou a luta no campo com o PT ocupando a presidência. Foi isso que ocorreu também recentemente com as greves da educação em 2016, que foram entregues para que os partidos que aparelham os sindicatos podessem se dedicar melhor à campanha eleitoral. E estou dizendo isso para citar dois exemplos apenas.
O que ocorre no geral com as eleições é uma inversão dos meios pelos fins, ganhar a disputa se torna um fim em si, e, com isso, se perde aquilo que é de fato importante, tentando alcançar o poder, quase sem se notar que este mesmo poder, nos moldes em que se encontra, é incapaz de gerar as mudanças estruturais que desejamos e que só poderá ser usado em favor das classes e elites dominantes. Então, para alcançar o poder, pela disputa, o partido, o candidato de esquerda se transforma naquilo mesmo que pretendia combater, não por um problema de princípios particularmente deste ou daquele, mas uma questão estrutural.
O que aconteceu com o PT não é próprio ao PT, é inevitável, é meio fatalista dizer isso, mas basta fazer as contas, o PSOL de hoje é o PT de amanhã. E esta história eleitoral se repetirá assim indefinidamente. Estes partidos canalizam um “nicho de mercado”, eleição é mercado, é sociedade de consumo dominando a atuação política e tornando-a controlável, vendível. Vence quem é vendível, e o que é vendível já está dentro da lógica dominante. É preciso notar ainda que o discurso eleitoral tem que ser um discurso de apaziguamento de classes porque se trata de ganhar a opinião pública tal como aí está, com todo o senso comum manipulado pela discurso dominante, e eleição não é formadora, não é educativa, não é “trabalho de base”, o político não educa o eleitorado, ele quer ganhá-lo com todos os seus preconceitos, quer convencê-lo, quer se vender como um produto no mercado. Para isso, ele vai necessariamente recuar. O medo de perder voto faz com que os candidatos sejam nivelados com poucas diferenças, o que difere é só uma imagem superficial, jamais a prática concreta que é determinada por outros fatores. O próprio discurso vai sendo esvaziado, até que os candidatos todos se parecem, porque eles querem agradar o mesmo público, devem, portanto, parecer inócuos e, acima de tudo, para governar, precisam fazer alianças e responder aos que realmente controlam as instituições, não ao povo.
Em algum momento pode ser necessário votar para tentar evitar o pior? Digamos Donald Trump, fanáticos religiosos…
Eu realmente entendo quem tem este medo, é um equívoco fácil de se cometer. Creio que esta ideia se deriva em máximo grau ainda do peso que as pessoas colocam no processo eleitoral e na via institucional. Mas existem lutas concretas acontecendo todos os dias, a troca de políticos ocupando cargos e o parlamento não é toda a vida política de uma sociedade, e não é o mais importante, fundamentalmente não é o que faz a diferença, não foi por meio disso que algum direito foi conquistado, nenhum salvador deu algum direito de presente ao povo, esta é uma ilusão muito nociva.
Ao lado disso, há o discurso do medo, temos que votar em tal candidato porque de outro modo algo terrível vai acontecer, este discurso é feito pelos dois lados, ‘tenham medo’, ‘votem em alguém para evitar uma catástrofe’. ‘Tenham medo, escolham um senhor para proteção’. Ora, as coisas já estão péssimas, muito terríveis mesmo. Não é o voto que vai evitar uma catástrofe maior, a catástrofe está posta, ela é a fase atual do capitalismo.
A descrença na democracia representativa por parte da esquerda não contribui para que a direita vença nas urnas com mais facilidade?
É a acusação que nós mais sofremos. “Se vocês votassem, nós ganharíamos as eleições.” Nós quem?! E aqui eu gostaria de dizer: “A César o que é de César! Quando vocês ganham as eleições, já não são mais de esquerda”. Sabe aquela famosa citação do Deleuze? “Não existe governo de esquerda porque a esquerda não tem nada a ver com ser governo”? Eles acham que se votássemos, a esquerda ganharia. Nós achamos que se a esquerda institucional deixasse de gastar tanto tempo, energia e dinheiro tentando ganhar e legitimar este processo, se não entregasse todas lutas de base, todas as greves e seus próprios princípios tentando ganhar isso (que já está perdido de saída), e se investisse este tempo, esta energia e este dinheiro na luta concreta e na organização popular, na criação de comunas autônomas, não haveria direita que conseguisse nos governar. Pois é claro que se pode ganhar e não levar, pois as lutas são diárias, são concretas, são nos espaços de base de construção da sociedade. E tanto mais fortes quanto menos institucionais.
Um governo mais à esquerda não pode ajudar a fortalecer a luta social?
Eu acho que pode inclusive enfraquecer, como já ocorreu com o chegada do PT ao poder em vários aspectos, porque a função do PT para as elites era justamente conter as lutas sociais por dentro, levando a luta para algo palatável, aceitável, negociável…
Entendemos o governo como um parasita, você não se mobiliza para ocupar o lugar de um parasita, você se mobiliza para acabar com ele. Isso não significa esperar que piore e achar que ‘quanto pior, melhor’ porque, supostamente, isso poderia levar as pessoas a se revoltarem mais. Isso é um discurso privilegiado, quanto pior, pior mesmo, nossa questão aqui é sobre o que realmente pode fazer melhorar.
Tivemos 14 anos de um governo dito de esquerda e isso não fortaleceu a luta social. O PT foi terrível para a luta no campo, não fez sequer a reforma agrária prometida, foi terrível também para os indígenas, para quilombolas, engessou os sindicatos nos quais tinha inserção, apoiou as UPPs nas favelas, paralisou o MST, criminalizou os movimentos sociais, inclusive assinando a lei anti-terrorismo… Serviu sim para calar os movimentos sociais e colocá-los a serviço de um projeto de manutenção do poder como um fim em si mesmo.
Seria impossível governar contra os interesses do chamado 1%, a favor de 99%?
Vamos pensar como seria isso. Primeiramente esta pessoa teria que se eleger e, portanto, sua campanha teria que ser financiada por quem tem dinheiro, no geral, grandes corporações que investem no processo eleitoral como modo de manterem-se exercendo o poder. Mas, digamos que houvesse um candidato que não fosse assim financiado não sendo engessado pelos mantenedores do sistema. Ainda assim, ele teria que agradar a opinião pública manipulada pelo monopólio dos meios de comunicação que servem à classe dominante. Candidatos de esquerda “paz e amor” jurando respeito à sacrossanta propriedade privada e dizendo que vão “governar para todos” não são acasos. Mas digamos que ele simplesmente não dissesse a verdade e pretendesse, mesmo após se eleger, realmente colocar pouco a pouco em curso uma política contrária aos interesses da classe dominante. Bom, ainda haveriam as alianças, os esquemas, toda a estrutura corrompida na qual ele estaria inserido e em relação a qual precisaria responder e ficaria amarrado. Por outro lado, digamos que ainda assim ele representasse em algum momento uma perda real para os banqueiros e aqueles que detém o grande capital. Houve um momento histórico no qual isso realmente ocorreu. Podemos lembrar aqui de Salvador Allende. Você acredita que eles diriam o quê? “Ah, ok, vamos aceitar nosso prejuízo porque afinal ele foi eleito por um sistema democrático”? Disseram isso para Allende? Óbvio que não, tal personagem imaginário seria deposto ou morto. Não existe real democracia, os donos reais do poder não têm qualquer problema em usar a força e suspender a aparência de Estado democrático sempre que é necessário, usando todos os meios necessários para isso, a exceção é regra na nossa sociedade, a aparência de democracia serve apenas para manter os 99% acreditando que têm real participação política. Votar é legitimar isso, é assinar embaixo desta farsa. A tragédia do PT encena, do particular para o geral, a tragédia da via institucional, ser vendido, corrompido, esvaziado e depois jogado fora por não servir mais aos interesses dominantes. Não precisamos encenar esta tragédia novamente.
Quais ações políticas considera mais importantes que o voto nesse momento?
As ações políticas concretas que considero importantes, mais importantes que o não-voto, são as ações de auto-organização coletivas nas células da sociedade e as ações de mobilização. Isso inclui as ocupações de escolas, as greves levadas pelas bases das categorias, as manifestações de rua, as assembleias de bairro, a criação de espaços autônomos e a criação de redes de apoio mútuo entre estes espaços. Tratam-se de ações que carregam os princípios da sociedade que defendemos, que não esperam que alguém faça por nós, pressionam o governo também, mas pressionam pela ação direta, pelo já fazer e mostrar que outro modo de vida é possível.
Não se trata de esperar a sociedade perfeita, mas pela auto-organização coletiva trazer melhoras para a vida das pessoas aqui e agora, ocupando um prédio e gerando moradia popular, por exemplo, impedindo um aumento das passagens através de manifestações de rua.
Quando eu digo que existe luta todo dia, não estou exagerando, todo dia estão removendo famílias, e existem resistências, todo dia a guarda está proibindo camelô de trabalhar e existem resistências, as favelas estão aí resistindo também, existe muita luta acontecendo na sociedade, no dia a dia, no micro, as pessoas podem atuar a partir dos espaços nos quais estão inseridas, podem ser agentes das resistências, podem ser fomentadores das resistências a partir de baixo, podem ajudar a construir um outro modo de vida sem precisar reproduzir de novo e de novo o espetáculo dos de cima.
E a longo prazo?
Acredito na educação libertária como arma na modificação da sociedade. Claro que não sem a construção de espaços verdadeiramente autônomos e a possibilidade de autogestão na produção e reprodução da vida.
Acredita que a maioria das pessoas não foi votar por estar engajada politicamente de outras maneiras, ou por comodismo e passividade?
Não estão engajadas politicamente, a maioria das pessoas não vota por uma descrença generalizada nos políticos. Esta descrença, embora não seja fundamentada, tem um significado político, vem aumentando e não é apenas um fenômeno brasileiro. Não se trata de uma maioria reacionária manipulada pela televisão. As pessoas em questão têm posições misturadas, não são completamente coerentes, não estão no geral acostumadas a atuar politicamente, mas isso não significa que a insatisfação que possuem seja menos legítima. Também não creio que seja comodidade, votar é mais cômodo do que ter que justificar ou pagar multa. Ocorre que há uma crescente descrença e insatisfação com o sistema representativo, decorrente da sua impossibilidade de promover mudanças reais, o que é facilmente constatado pelas pessoas, principalmente depois da chegada da social-democracia ao poder.
Há tentativas de mandatos representativos coletivos pelo país, como um coletivo anarquista eleito para uma vaga na câmara de vereadores. O que acha da ideia?
Eu não sei detalhes sobre isso, mas toda a ideia soa muito fake, me lembra aquelas mercadorias industriais com um selo de ‘feito à mão’. O que estou querendo dizer é oseguinte: me parece outra tentativa de tragar o que está fora do sistema para mais um objeto de consumo no processo eleitoral. O capitalismo é muito bom nisso, ele mata e depois vende. O que você quiser, o capitalismo pode te vender, menos o que não é vendível. Então, é como se ele procurasse o que pode negá-lo, construísse um fake palatável e vendesse no mercado. E isso é um modo de esvaziar o sentido do que realmente poderia negá-lo. E o mercado pode vender tudo, menos o que nega o mercado – menos a igualdade social, por exemplo. O processo eleitoral, como uma instância do mercado, também é assim. Portanto, tenta tragar de modo espetacular para dentro de si o que o nega e se coloca como fora dele. Mas só pode fazê-lo, claro, por meio de uma fake, por meio de uma imagem espetacular daquilo que o recusa. O que eu gostaria de dizer sobre isso é: nós anarquistas não somos mais uma opção vendível no sistema representativo, não existe gestão coletiva dentro da câmara, isso não é capaz de tornar este sistema menos ilegítimo, somos o totalmente outro deste sistema, não estamos aqui para disputá-lo, estamos aqui para tensionar as suas estruturas e fazê-las ruir.