No último 26 de julho, o ITTC – representado por Ananda Endo e Wallesandra Souza Rodrigues, integrantes do Projeto Estrangeiras – participou da roda de conversa O Direito Humano à educação no cárcere: estudo e remição de pena, com outras entidades que compõem o GT Educação nas Prisões. A atividade fez parte da programação do curso de Formação em Direitos Humanos realizado pela Ação Educativa. Como ponto de partida para a discussão, os integrantes presentes do GT (ITTC, Pastoral Carcerária, Defensoria Pública do Estado e Ação Educativa) se debruçaram sobre dados fornecidos pela SAP, que retratam a situação das políticas de remição de pena nas unidades penitenciárias do Estado em 2016. A contribuição do Instituto foi uma reflexão a partir da perspectiva de gênero.
Do ITTC
Imagem retirada do site ITTC
Antes da fala do ITTC houve a exibição do vídeo da campanha “Por que é melhor não prender?”, e a provocação continuou a partir da consideração de que, sob a ótica do sistema de justiça (legislativo e judiciário), as políticas de gênero são construídas sempre em torno da maternidade, de forma a reduzir a mulher à condição de mãe, assim como invisibilizar as demais questões de gênero que permeiam a realidade da população feminina. Diante disso, falar sobre encarceramento feminino é inevitavelmente falar sobre maternidade, uma vez que, das mulheres presas, 87% das brasileiras e 78% das estrangeiras são mães.
A maternidade no cárcere é operada como uma imposição e instrumento de punição, impedindo mulheres de exercerem qualquer outra atividade que não o de ser mãe, portanto, privando-as de acessar direitos durante a gestação e puerpério, sendo que em momento posterior têm os bebês retirados do convívio sem que haja espaço ou tempo de transição e/ou adaptação. À vista disso, achou-se importante a discussão de que, em regra, não é permitida às mulheres mães a participação em atividades que possibilitem a remição de pena durante o período de amamentação.
Sob a justificativa de existir maior possibilidade de cuidado das crianças em alas separadas do presídio, chamadas “berçário” ou “pavilhão materno”, algumas presas gestantes e/ou lactantes são transferidas provisoriamente para unidades prisionais que possuem essa estrutura. Segundo dados do Infopen de 2016, poucas são as unidades prisionais que possuem essa ala separada, somando apenas 14% dos presídios femininos ou mistos em todo o Brasil, como é o caso da Penitenciária Feminina da Capital. Essa condição provisória é chamada “regime de cadeia de trânsito”, uma das justificativas para que mulheres mães não tenham acesso a políticas de remição (trabalho e estudo), pois pressupõe-se que a mulher permanecerá pouco tempo no estabelecimento, não fazendo jus a participação em programas a longo prazo.
Incumbidas do cuidado em tempo integral dos filhos, as mulheres não podem trabalhar nem estudar e são privadas do acesso a atividades que ocorrem nas demais áreas das penitenciárias, sob a justificativa de preservação da saúde dos bebês, isolando-as e privando-as de possibilidades de convívio. Essa prática convencionada do sistema prisional para excluir as mulheres mães do exercício desses direitos não possui prerrogativa legal, de modo a impor a maternidade à mulher, fragilizando-as ainda mais psicologicamente.
Mais uma observação feita em nossa exposição foi de que grande parte das mulheres presas são as principais ou exclusivas provedoras do lar. O relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil, produzido pelo ITTC junto a outros parceiros, indicou que 65% das mulheres brasileiras mães presas exercem a maternidade sem qualquer apoio dos pais das crianças e não mantêm relações com eles – do que se pode depreender que a maior responsabilidade sobre a família recai sobre elas. Sendo assim, como em muitas unidades as poucas ofertas de trabalho e estudo ocorrem em horários concomitantes, muitas acabam optando por apenas trabalhar – ainda que ambos sejam direitos das pessoas presas – para poderem gerar renda e mandar dinheiro para as famílias.
Outra problemática relevante é o fato do trabalho no contexto prisional não ser regido pela CLT, fazendo com que as pessoas presas fiquem ainda mais vulneráveis à exploração trabalhista. A Lei de Execuções Penais estabelece uma renda mínima, equivalente a ¾ do salário mínimo. Os dados do Infopen de 2016 apontam que apenas 15% da população de presos no Brasil exerce atividades de trabalho, sendo que 75% destes recebe uma remuneração abaixo do piso legal estabelecido – e, dentro deste número, 33% não recebe remuneração alguma. Em relação aos presídios femininos, alguns estados brasileiros não chegam a respeitar esse piso – no caso de Brasília, Mato Grosso e Acre, inclusive, 100% das mulheres não recebem remuneração alguma. Em São Paulo, enquanto 4% não recebe remuneração, a maioria (56%) recebe menos que a renda mínima. O trabalho da pessoa presa acaba sendo um negócio lucrativo às empresas contratantes, pois estas ficam isentas dos encargos sociais, bem como estão menos sujeitas à verificação das condições de exploração por elas exercidas, uma vez que a prisão é um local de isolamento, fechado aos olhos da sociedade. Ainda, é recorrente o discurso que defende a dignificação da pessoa infratora da lei através do trabalho, como forma de retribuição à sociedade pelo dano por ela causado, operando como elemento de justificação de práticas abusivas e violações de direitos.
Dentre as atividades laborais fornecidas, é muito comum que estas sigam padrões de rotulação de gênero, atribuindo às mulheres funções de costura, artesanato, cozinha. Para muitas delas o trabalho é uma tática de sobrevivência, para ocupar o tempo e se distrair do sofrimento proporcionado pelo encarceramento. Diversas vezes estas acabam sendo as principais contrapartidas extraídas das atividades de exploração exercidas, uma vez que o trabalho dentro da prisão também é contaminado pelo estigma do cárcere, de modo que esta experiência não tem valor no mundo exterior. Tais atividades não geram qualificação profissional às mulheres ao saírem da prisão, de tal forma que acabam servindo, quando muito, para a ocupação de cargos precarizados na vida extramuros.
A partir dos dados disponibilizados pela SAP, ficou explícita a dificuldade de chegar a conclusões precisas uma vez que se verificaram erros grosseiros no levantamento, como a discrepância em relação à população total e o número de mulheres que trabalham (um exemplo de dado incongruente é referente à Penitenciária Feminina de Santana, no qual consta que a população carcerária total é menor do que a quantidade de mulheres trabalhando).
Apesar do caráter questionável dos levantamentos de dados da SAP e do Infopen, ainda é possível verificar a prevalência da oferta de trabalho em comparação à oferta de estudo, constatação esta que a equipe do ITTC pode verificar também em sua experiência nas visitas às unidades e conversas com as mulheres. É mais destoante ainda a comparação entre ofertas de trabalho e leitura, que em sua totalidade só são viabilizadas por meio da iniciativa de organizações privadas e da sociedade civil (voluntários). A ausência de informação específica sobre cursos profissionalizantes que ocorrem em algumas unidades de regime semi-aberto também é um não-dado que chama a atenção, pois se torna impossível concluir se estão agrupados na categoria estudo ou trabalho. Isso porque, por vezes, os cursos profissionalizantes operam como forma de justificar trabalhos não remunerados. Na pesquisa “Educação nas prisões”, realizada em 2013 pela Ação Educativa, grande parte das mulheres entrevistadas afirmou preferir acesso a cursos profissionalizantes dentro da prisão, o que possibilitaria maior qualificação para a posterior re-inserção no mercado de trabalho. Segundo o Infopen Mulheres 2016, 50% das mulheres em atividades educacionais estão no ensino fundamental, porém, apenas 7% das penitenciárias possuem capacitação profissional.
Faz-se urgente a efetivação qualificada das políticas de remição como forma de evitar minimamente a ampliação da situação de marginalização social da população prisional, marginalização essa fortemente presente nas trajetórias pessoais de quem é encarcerado, uma vez que a estigmatização é um processo que antecede a condenação, e que é agravado por ela. Alguns questionamentos foram levantados a partir dessa discussão: quais são os cursos profissionalizantes oferecidos? Quais as possibilidades dessa qualificação profissional ser condizente com atividades de trabalho encontradas extramuros? Essa formação tem contado para fins de remição de pena?
Importante mencionar que o acesso ao direito de trabalhar e estudar não significa exatamente acessar o direito à remição. Isso acontece porque a consideração dos dias remidos muitas vezes depende do encaminhamento aos autos dos documentos acerca das atividades realizadas para fins de remição e que comprovem bom comportamento dentro da prisão pela Unidade Prisional, ou, na inércia desta, fica a cargo da defesa a solicitação da remição de pena no processo. Esse pedido segue para análise do juiz, no entanto, a burocracia destes procedimentos faz com que, por vezes, a mulher não seja beneficiada pela remissão que lhe é de direito durante o cumprimento da pena, devido à morosidade excessiva.
O trabalho é um direito da pessoa presa, portanto, é dever do Estado garantir sua efetivação. Porém ele não é visto como tal, mas sim como uma oportunidade concedida na chave de uma benesse que não merecem devido ao estigma social da pessoa “criminosa”, compreendido assim também pelas pessoas presas.
Ainda, é evidente que a pena não acaba com a saída do cárcere. As pessoas egressas permanecem estigmatizadas, sofrendo não só as consequências diretas (físicas, psíquicas, sociais) da vida dentro da prisão – compreendida enquanto um ambiente de tortura constante – como também a discriminação por parte da sociedade. O problema é ainda maior quando se trata da população migrante. A língua é um grande empecilho à adaptação, bem como a distância da família, a ausência de vínculos e redes de apoio.
No contexto prisional, é evidente a impossibilidade de criação de espaços educacionais adequados a uma formação libertária e emancipatória, capaz de contrapor as desigualdades socialmente impostas, uma vez que o sistema educacional capitalista opera no mesmo sentido das demais instituições estatais de controle (entre elas o sistema prisional), o que leva à evidente conclusão de que um programa educacional estatal dentro das instituições, em sua essência, jamais irá de encontro às finalidades das mesmas, que é de punição e dominação. Contudo, a política do encarceramento é exercida contra indivíduos, portanto, é obrigação do Estado garantir a efetivação dos direitos fundamentais, dentre eles a educação, às pessoas presas – assim como também a toda e qualquer cidadã e cidadão – em termos de possibilitar ao menos qualificação e profissionalização, no intuito de evitar a infinitude do ciclo de estigmatização e marginalização daqueles que passam pelo sistema prisional.