Não iluda os alunos negros

FONTEPor Ricardo Corrêa, enviado ao Portal Geledés
Foto: Adobe

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita é uma civilização decadente. Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma civilização enferma. Uma civilização que trapaceia com os seus princípios é uma civilização moribunda.

          ‒ Aimé Césaire

Em uma das passagens da obra Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, a intelectual antirracista e feminista, bell hooks¹, escreveu o seguinte comentário de um dos seus alunos “Nós fazemos seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo e a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida.” Os alunos que testemunharam o desabafo do colega, concordaram. E essa passagem sugere que uma das particularidades da prática docente de bell hooks, acima de qualquer expediente emocional que pudesse provocar nos estudantes, era a construção de um olhar crítico sobre a realidade.

Aproveito esse exemplo para chamar a atenção de todos envolvidos na construção do conhecimento, independente da área que lecionam. Nesse mundo de acentuada violência, um dos desafios dos professores que trabalham nas escolas da periferia é a utilização de discursos/ensinamentos que tenham conexão com a realidade concreta dos alunos, sem provocar demasiados sentimentos pessimistas com relação ao futuro. Os professores que exercem a docência universitária, além dos conhecimentos técnicos inerentes a área relacionada ao curso, também precisam de diferentes abordagens quando se referem às possibilidades profissionais dos estudantes após a formação superior.

Durante a minha vivência escolar, era comum a indagação dos alunos sobre a aplicabilidade de certos conteúdos, principalmente nas matérias de exatas “é muita continha professor!”, “não vai servir pra nada quando a gente sair da escola”, dizíamos. Os professores nos respondiam com exemplos do cotidiano, mas geralmente associavam a alguma área profissional “essas fórmulas serão utilizadas quando vocês forem arquitetos, engenheiros, físicos, médicos etc”. No entanto, a resposta não nos convencia. Não éramos tão ingênuos. Como estávamos expostos a todos os tipos de mazelas sociais, as nossas esperanças encontravam-se interditadas. Quem mora na periferia sabe que a dinâmica é de muitas dores; pessoas assassinadas, violentadas de diferentes maneiras, entregues ao vício das drogas e álcool, dificuldades econômicas etc. 

Nas instituições de ensino superior, os estudantes procuram saber quais os campos da profissão que podem absorvê-los após a formação. Mas as respostas dos professores são tão ilusórias que os estudantes acreditam que a mudança de classe social é um movimento inevitável. O otimismo exacerbado pode pavimentar uma aguda frustração no futuro. Nesta sociedade, o racismo e o capitalismo não podem ser ignorados. Os professores desconsideram que o espaço universitário não é mais ‒ predominantemente ‒ “leitoso”, como há vinte anos. O número de negros e pobres deu um salto após as cotas raciais, entre outras políticas públicas de acesso à educação. Portanto, tudo que se dizia na sala de aula às camadas privilegiadas não se aplica ao novo perfil de estudantes. Os alunos precisam ser conscientizados dos obstáculos que enfrentarão. O debate também deve fluir no sentido de estimular práticas antirracistas, identificação e denúncias. Nós sabemos que os brancos sempre tiveram vantagens no mercado de trabalho, e não importa se as pessoas negras são mais capacitadas. Tão verdade que o número de brancos medíocres, nos espaços de decisão nas empresas, não é pequeno; e o número de negros competentes que estão desempregados, e em cargos de baixa relevância, é enorme. Por tudo isso, nunca se esqueça de bell hooks. Sejamos honestos com os nossos alunos. A democracia racial não existe. Repassem!


¹  Gloria Jean Watkins (1952-2021) utilizava o pseudônimo bell hooks, redigido com letras minúsculas. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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