Ser negro-índio: a força das ancestralidades no Quilombo Itamoari (PA)

No final de julho deste ano, dados inéditos sobre a população quilombola divulgados pelo IBGE mostraram que no Brasil mais de 1.3 milhões de pessoas se declaram quilombolas. Essa expressividade numérica indica que os territórios quilombolas e suas gentes são diversos, cujas comunidades vivem sob ameaças constantes, conforme materializado com o assassinato brutal de Mãe Bernadete, ialorixá e liderança do quilombo Pitanga dos Palmares, localizado na região metropolitana de Salvador (BA).  Conhecer as múltiplas formações históricas dos quilombos favorece a compreensão de que cada território possui demandas e enfrentamentos singulares.Nesse sentido, dar visibilidade à presença afro-indígena nos territórios quilombolas diz respeito de contar a história dessa multiplicidade.

O quilombo Itamoari, situado no nordeste paraense, exemplifica que a diversidade quilombola está associada a sua formação etnico-racial. Ali, na extremidade da divisa entre os estados do Pará e do Maranhão, município de Cachoeira do Piriá (PA), negros e indígenas estabeleceram relações socioculturais, dando origem à comunidade quilombola. Com efeito, apesar de em  termos existenciais haver uma indissociabilidade entre a identidade negra e indígena, a  presença indígena foi invisibilizada nas narrativas sobre o território. Situação que começa a ser revisitada no momento atual. 

O nome do lugar revela aspectos linguísticos derivados, possivelmente, da língua indígena do povo Tenetehar-Tembé: ita (pedra) / mauari (garça branca). O território da comunidade é demarcado numa área equivalente a 5.377 hectares, situado à margem esquerda do rio Gurupi, próximo de outras comunidades quilombolas como Bela Aurora e Camiranga, bem como de grupos indígenas habitantes dessa região de fronteira interna. O Itamoari possui cerca de 60 famílias que vivem das atividades extrativistas, da pesca, da agricultura e de empregos formais e informais.

Mapa de Itamoari e o uso e cobertura, 2021. Fonte: Núcleo de Meio Ambiente

Historicamente, recordamos que a região banhada pelo rio Gurupi e o rio Turiaçu foi palco do povoamento de indígenas da etnia Ka’apor, Tenetehara-Tembé e Timbira. Durante o século XVIII, com a intensa introdução da mão-de-obra africana escravizada nas terras do Maranhão, a localidade Turiaçu-Gurupi abrigou intensas fugas de pessoas em busca da liberdade, A região, caracterizada como o “sertão”, segundo a pesquisadora Sueny Souza, era visualizada como rota de transição para onde se deslocavam as pessoas fugidas da escravidão, dos aldeamentos e das fileiras de recrutamento. Elas buscavam no local liberdade e esperança.

Quilombola e seu instrumento de pesca. Fotografia de Pedro Tobias. Quilombo Itamoari (PA), junho de 2018. Fonte: acervo fotográfico do GEIPAM – Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão, UFPA/Bragança.

Segundo Vicente Salles, pessoas negras escravizadas que fugiam das fazendas e engenhos maranhenses tomavam a direção das florestas, especialmente para a região de fronteira e proximidades de rios, como o rio Gurupi. Ali, as fugas eram constantes e desencadearam a proliferação de vários mocambos. A esse respeito,  conforme detalhou o historiador Flavio Gomes,  os mocambos eram sociedades compostas por negros, indígenas e pessoas de outras origens étnicas que se uniam com o intuito construir um espaço de liberdade. O quilombo de Itamoari foi um mocambos que, conforme Jorge Hurley, havia negros e indígenas vivendo maritalmente e compartilhando saberes e modos de vidas, constituindo, portanto, relações afroindígenas, conforme descreve Marcio Goldman

Nesse contexto histórico, houve a interseção entre duas culturas, dando espaço para o surgimento de algo novo, caracterizado por  somar estratégias de sobrevivências e resistências que culminaram em diversos saberes e práticas.  Na região do rio Gurupi e no quilombo Itamoari, as ancestralidades negra e indígena estão entrelaçadas nas características socioculturais do povo e do território. Não por acaso, quando indagamos alguma pessoa da região é comum que ela se auto identifique como quilombola de ancestralidade negra e índígena. De igual modo, como quilombola e historiadora, afirmo que nossa ancestralidade negra-índia se expressa nos saberes e nos modos de vida, bem como em diversas atividades realizadas dentro do quilombo como na pesca, no uso da flecha, na confecção de instrumentos artesanais com o uso de cipós para fabricar a camina,cabacinha e cacurí.As tradições culturais também materializam a presença afro-indígena. Um exemplo é a dança do cajá, que é uma prática própria do quilombo, composta somente por mulheres que dançam ao som do tambor e maracá, orquestrado pelas mais velhas. Durante as apresentações, elas movimentam suas saias longas e alaranjadas de acordo com a variação rítmica do batuque e dos maracás. As letras das músicas contam histórias do cotidiano de Itamoari. Outro aspecto cultural que se destaca é a realização de banquetes comunitários que acontecem na Ramada de São Benedito, espaço onde acontecem as reuniões e partilhas comunitárias.  Ao indagar os parentes sobre o porquê do nome, recebi a seguinte afirmação: “Porque somos negros e somos índios.” Essa resposta exprime que o pertencimento negro e indígena é indissociável na constituição identitária para as pessoas do quilombo Itamoari. 

Rosilda e seu maracá na Dança do Cajá. Fotografia de Pedro Tobias. Quilombo Itamoari (PA), junho de 2018. Fonte: arquivo fotográfico do GEIPAM – Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão, UFPA/Bragança.

Nos últimos cinco anos,  nossa ancestralidade começou a ser revisitada,  principalmente com o retorno dos estudantes universitários quilombolas para a comunidade,  instigados com o olhar da contracolonização, conceito criado pelo quilombola e pesquisador Nego Bispo. Desse modo, reeditamos as nossas trajetórias a partir de nossas próprias matrizes, escrevendo uma fala a partir de nós e através da força da oralidade. Em 2021, no contexto da aprovação e execução da Lei Aldir Blanc, os projetos que propomos traziam a necessidade da valorização dos saberes dos quilombolas por meio da oralidade, ressaltando a importância de narrar sobre nosso lado familiar indígena. Neste momento, chamamos atenção o nosso parentesco com os indígenas Tenetehar-Tembé. Essa ancestralidade está relacionada à ancestral Petroníla Lima Sota, a parteira e pajoa Pituca. Vale destacar que em Itamoari, o termo pajoa se refere ao fato de ser mulher e pajé.  Segundo os relatos, ela chegou na região com parte de sua família e, posteriormente, casou-se com Dionísio do Carmo, líder de Itamoari, tornando-se uma liderança de respeito e disseminadora da cultura Itamoari. Apesar dessa evidência histórica, durante o processo de titulação do território, a ancestralidade indígena foi subestimada, o que destoa de sua real importância indígena para constituição do quilombo. 

Atualmente, a categoria negro-índio ganha destaque para demonstrar as memórias que ficaram submersas em nossa história, e que agora retornam para impulsionar o sentimento de coletividade e territorialidade. Desta forma, o termo negro-índio representa para nós, quilombolas de Itamoari, saber de onde viemos e quem somos. Representa a nossa ancestralidade e nossa força, manifestada por meio do cantar, do dançar cajá, das comemorações e banquetes realizados na Ramada de São Benedito, dos nossos parentescos com o povo indígena e da escrita de nossa história. O termo negro-índio diz respeito de  como olharmos nossas raízes e afirmamos que somos negros, somos indígenas e também  quilombolas.

Assista ao vídeo da historiadora Maria Madalena dos Santos do Carmo no Acervo Cultne sobre este artigo: 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental:

História – EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI36 (9º ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência).

Geografia – EF07GE03 (7º ano: Selecionar argumentos que reconheçam as territorialidades dos povos indígenas originários, das comunidades remanescentes de quilombos, de povos das florestas e do cerrado, de ribeirinhos e caiçaras, entre outros grupos sociais do campo e da cidade, como direitos legais dessas comunidades).

Ensino Médio: EM13CHS601 (Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual); EM13CHS204 (Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas).


Maria Madalena dos Santos do Carmo

Telefone: (91) 98488-9659

Historiadora; Mestranda em Diversidade Sociocultural pelo Museu Paraense Emílio Goeldi; Quilombola de Itamoari;

E-mail: [email protected];

Instagram: @m_madalleucy


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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