Literatura de Conceição Evaristo resgata a ancestralidade negro-brasileira

As “escrevivências” da escritora Conceição Evaristo mostram a importância de voltar ao passado para caminhar no presente, mostra artigo da “Revista Criação & Crítica”

Conceição Evaristoé uma das maiores personalidades da literatura contemporânea feminina brasileira, homenageada como Personalidade Literária do Ano pelo Prêmio Jabuti, em 2019, cujas obras resgatam a ancestralidade e recuperam a genealogia “negro-brasileira”, retratando o cotidiano das mulheres negras, os preconceitos que enfrentam nos âmbitos social, cultural e político. A literatura negro-brasileira é um instrumento de concretização para o não colonialismo, a “decolonialidade”, na medida em que as mulheres se “autorrepresentam e autoficcionalizam-se”, pois, falar de si, é falar do coletivo. Para discutir essas questões, os pesquisadores Rayron Lennon Costa Sousa e Risoleta Viana de Freitas, em artigo da Revista Criação & Crítica, tomam como base o conto da escritora intitulado Olhos d’água.

No artigo A genealogia negro-brasileira contemporânea de autoria feminina na literatura de Conceição Evaristo: Tempo, Temporalidade e Ancestralidade em Olhos d’água (2018), os autores associam o texto literário com a história, em relação “ao lugar do tempo, da temporalidade e da presença das ancestralidades”, com o objetivo de observar a criação textual que estabelece um vínculo entre as mulheres “pela sororidade e pela dororidade, partindo do que Conceição Evaristo, enquanto teórica, conceitua como Escrevivência”. A obra dela e de outras autoras, como Ana Maria Gonçalves, Lívia Natália, Jarid Arrais, Cristiane Sobral, dentre outras, contam com uma característica comum – a genealogia feminina, acrescida de uma peculiaridade: “uma árvore que tem como raiz uma mulher que segura na mão da outra e assim, em um movimento espiral e de escrevivências”, declaram os pesquisadores. 

Conceição Evaristo desempenha, na atualidade, um papel fundamental na literatura negro-brasileira, reverenciando suas ancestrais como parceiras tanto pela condição feminina quanto por serem negras, seguindo caminhos de lutas e de dores, compartilhados nas personagens femininas atadas pela representação simbólica da cor dos olhos, no conto Olhos d’água. Nesse conto a história, o tempo e a ancestralidade são instrumentos de concretização da liberdade de autobiografar-se e de representar a si própria, sem barreira de terceiros: “É vivendo, se vendo e vendo o outro como partícipe que mantém seu olhar pairando no passado e no presente, questionando-se sobre o futuro”. 

A respeito do protagonismo afrodescendente na literatura brasileira contemporânea, este é marcado pelo passado da figura do negro como escravo, sem direitos de cidadania, classe inferiorizada, como bem expressa o romancista Aluízio Azevedo, em O Cortiço, “onde o encontro de classes e de culturas acontece, demarcando a relação de superioridade e inferioridade entre seus moradores”. Porém, hoje, as vozes negras protagonizam e criam personagens e histórias, como, entre tantos outros, Luís Gama, Solano Trindade e Carolina Maria de Jesus. A literatura como denúncia é uma das características de Conceição Evaristo, relatando ao leitor as dificuldades, os infortúnios, o descaso social, os obstáculos e os impasses dos moradores das “favelas e becos”.

Em Olhos d’água, coletânea que também dá nome ao conto estudado, Conceição remete às origens da cultura negra, “que tem como raiz o continente africano”, referência em seus escritos, ou em suas “escrevivências”, para relatar, registrar e documentar, dar voz a essa escritora negra, militante, poeta e crítica literária que, por meio de sua escrita, relata o “percurso histórico-social dos afrodescendentes no Brasil” e assim se correlaciona aos contextos sociais contemporâneos. Em Olhos d’água, o conto, Conceição apresenta “o tempo presente como porta para pensar o tempo passado”, ressaltando a questão da morte, “o genocídio de negros e negras nas favelas, nos quintais”. Acentua-se também a condição social das famílias; “filhas e mãe agarrando-se para suportar o medo da possível queda do barraco”, além da perseguição religiosa desde a colonização até hoje, tentando reprimir, pela violência, a religiosidade inerente à identidade nacional afro-brasileira.

O conto mostra as relações entre tempo e religião, observadas quando a narradora-personagem, na ânsia de lembrar a cor dos olhos da mãe, faz uma oferenda aos Orixás: “A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum […] ao contemplar os olhos da mãe, a cor refletia águas correntes – era cor de olhos d’água – águas dedicadas à Mãe Oxum, que é a mãe do amor”.

Essa procura da narradora traduz o resgate de suas lembranças que também se constituem na preservação das raízes ancestrais, com o intuito de estimular o autoconhecimento, de sacramentar a identidade dos afrodescendentes e afro-brasileiros. Quando a personagem compara os olhos da mãe a rios calmos, “águas de Mamãe Oxum”, legitima o lugar e a dimensão da ancestralidade feminina ao longo da narrativa. A ancestralidade feminina negra nessas “escrevivências” estudadas pelos autores do artigo está inter-relacionada à cronologia do tempo linear, “já que as temporalidades vêm com o ato de rememorar, cortes de tempo cronológico que soam como eternidade”.  

Artigo

SOUSA, R. L. C.; FREITAS, R. V. de. A genealogia negro-brasileira contemporânea de autoria feminina na literatura de Conceição Evaristo: Tempo, Temporalidade e Ancestralidade em Olhos d’água (2018)Revista Criação & Crítica, São Paulo, n.29, p. 198-217, 20121. ISSN: 1984-1124. DOI:  https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.i29p198-217.  Disponível em: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/article/view/171360. Acesso em: 19 maio 2021.

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