Negros e ricos?

FONTEPor Karinne Siqueira Nunes, enviado para o Portal Geledés
Sérgio Lima/Poder360 – 3.set.2018

Eu sou rycaaa!??

Então, depende neh mores?!

Brincadeiras a parte, há alguns anos desde que fiz meu trabalho de final de curso, há um questionamento que sempre me deixa inquieta, e não sou capaz de responder: Será que existe no Brasil algum negro plenamente rico?

Para tentar explicar as causas dessa dúvida, traçarei uma linha de raciocínio, que vai explanar diferentes conceitos de pobreza, para posteriormente contrastar com a realidade em que estamos inseridos e, assim podermos refletir sobre essa questão.

Afinal o que é pobreza? Embora sempre relacionada a escassez de algo, esse é um problema estrutural da sociedade que advem de inúmeros fatores, e como um fenômeno multi-facetado, a sua definição é algo complexo que vai se guiar pela vertente de estudo, pelo período e as características sociais desse intervalo, entre outros. De forma gradativa de complexidade trabalharei com três enfoques, que não são contrários entre si e, tendem mais a terem uma relação de complementaridade, que são a pobreza absoluta, relativa e privação relativa.

A primeira vertente, seu aspecto absoluto, há a definição de padrões para o nível mínimo de sobrevivência, o seu foco está na determinação das linhas de pobreza, fixando através desse limite qual parte da população é rica ou pobre. Os valores para esse consumo mínimo de vida, pode ser estimado considerando diferentes aspectos como o nutricional, necessidades básicas, moradia, vestuário, serviços essenciais. Calculando assim a renda necessária para custeá-los.

A segunda abordagem, pobreza relativa, leva em conta o ambiente em que o indivíduo está inserido. Há uma contextualização dos padrões estabelecidos, pois por mais que a pessoa possua renda para suprir suas necessidades básicas, ela ainda pode ser considerada pobre, quando se considera seu meio social. Um exemplo, suponha que um indivíduo receba um salário em torno de R$ 1200,00 e que ele viva em um país em que a renda per capita seja de R $1000,00/indivíduo dentro desse parâmetro ela está acima da média. Contudo, o município em que ele mora possui uma renda per capita de R$ 2500,00/ individuo, logo dentro da sua comunidade ele está aquém desse padrão.

E por último, sendo um conceito mais humanizado e abstrato e onde se concentra o questionamento dessa reflexão, a pobreza como forma de privação relativa, esse enfoque tem uma linha de pensamento mais abrangente, de forma que para o indivíduo ser rico é necessário que ele tenha liberdade para poder levar a vida que ele realmente deseja. Um dos principais teóricos dessa corrente, Amartya Sen, nos traz o fato de que as privações não são apenas materiais, podendo afetar diversas áreas da vida, e que essas vivências irão refletir na posição que esse cidadão ocupa. No conceito trabalhado por Sen, a renda é apenas um meio para que as pessoas possam obter novas capacidades, e assim se desenvolverem. Logo, ele desvia o foco dos meios ( no caso a renda) para os fins ( desenvolvimento e resultado), e para a à liberdade que o indivíduo teve para alcançar esse fim (as dificuldades encontradas, seja pela falta de estrutura da sociedade, pela forma social de sua comunidade, enfim são as barreiras que vão tirando a liberdade das pessoas realizarem suas vontades). O aumento das capacidades humanas tendem a caminhar junto com a expansão da produtividade e do poder de auferir renda. Segundo Crespo e Gurovitz, em seu artigo sobre conceito de pobreza, Sen vai dizer: “o desenvolvimento supõe que se removam as principais fontes de privação de liberdade. Pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos”.

Resumindo de maneira informal, Sen desvia o foco dos meios para os objetivos finais, partindo desse ponto o desenvolvimento como instrumento de combate à pobreza dá poder ao agente para que ele possa determinar seu próprio método , fornecendo-lhe uma estrutura que o permita caminhar sozinho e, galgar cada vez mais capacidade maiores, resultando em uma maior liberdade. Exemplificando, um indivíduo que tenha renda para o básico, e acesso democrático a serviços essenciais de qualidade, tem uma segurança maior para tentar melhorar suas perspectivas de crescer no futuro, não sendo refém de oportunidades econômicas precárias que ceifariam as suas chances de crescer. Uma coisa é você optar fazer jejum, quando se tem acesso a um regime alimentar adequado, outra totalmente diferente é ficar em jejum por não ter o que comer, não ter opção. Da mesma forma, uma coisa é se submeter a empregos com cargas excessivas e desgastante, com o objetivo de melhorar a experiência no curriculum e tendo base para ter perspectivas melhores posteriormente, não dependendo desse salário para cobrir gastos básicos, como saúde, educação. Outra totalmente diferente é depender dessa única fonte de renda para cobrir toda essa estrutura de sobrevivência.

Complementando, o conceito de privação relativa, o banco mundial realizou Avaliações Participavam sobre a Pobreza, entrevistando a população desprovida de vários países do mundo, sobre o que é ser pobre. Dando voz as pessoas que ocupam o lugar de fala, nesse estudo a pobreza é definida como falta do necessário para o bem-estar material. Há ainda o aspecto psicológico, pois há a consciência por parte da população menos favorecida, da sua falta de voz, de poder e independência que os sujeita a exploração. Eles ainda identificam a situação vulnerável em que se encontram,e como isso os deixa mais suscetíveis à humilhações e ao tratamento desumano pelos agentes públicos e privados, quando pedem ajuda. Ainda no artigo de Crespo e Gurovitz sobre os diferentes conceitos de pobreza, uma definição resumida do conceito de pobreza pelos pobres é:
“Pobreza é fome, é falta de abrigo. Pobreza é estar doente e não poder ir ao médico. Pobreza é não poder ir à escola e não saber ler. Pobreza é não ter emprego, é temer o futuro, é viver um dia de cada vez, é perder seu filho para uma doença trazida pela água não tratada. Pobreza é falta de poder, falta de representação e liberdade”.

Considerando todos esses conceitos, pelas abordagens absoluta e relativa, existem inúmeros negros ricos no Brasil, pois está baseado na questão financeira estritamente. Por outro lado, em relação a privação relativa, me questiono: como é ser rico e ao entrar nas boutiques ser mal atendido, ou ser confundido com os vendedores, por causa da sua cor. Como é ser rico é frequentar ambientes onde há poucas pessoas, ou muitas das vezes você é a única pessoa negra? Como é ser rico em uma sociedade regida por um sistema que priva esse lugar da do sua raça? Como é ser rico é não poder expressar livremente sua religião e a dos seus antepassados, sem sofrer com o preconceito? Como é ser rico e não ter voz? Como é ser rico e não ter padrões de beleza que consideram a sua raça? Onde em um país com mais de 50% da população sendo negra/parda, a sua representatividade na TV e outros meios de comunicação é mínima? Como é ser rico é não ter paz quando seu filho sai, por medo da violência contra sua cor? Como se pode levar a vida que se realmente deseja quando o racismo, te agrade, te oprimi, te priva de inúmeras formas, te marca ao longo de toda a sua vida, e põe em teste a sua dignidade, sua integridade. Como é ser rico e ser ensinada desde de criança que por causa da sua cor, você deve trabalhar mais, ser sempre mais capaz, estar sempre a frente dos demais. O racismo que fere Chico, também fere Francisco, o racismo no Brasil é estrutural e independente da sua renda, posses, ainda sim você está sujeito a esse problema. É cruel demais, pensar que em pleno século 21, o racismo ainda te priva de poder usufruir da sua própria riqueza plenamente.

A luta negra ainda está longe do fim, a nossa força nos mantém de pé, mesmo diante de tantas injustiças. Talvez seja essa nossa maior riqueza, essa força que ninguém pode tirar de nós. Resistimos dia após dia, sempre buscando melhorar, buscando nosso espaço, nossos direitos, nossa verdadeira liberdade.

 

Referência:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-56482002000200003


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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