No Brasil, nos últimos tempos, a expressão direitos humanos se apequenou

Quis o destino — quem sabe, o Criador — que Dom Paulo Evaristo Arns partisse quatro dias depois do 68º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a praticamente uma semana do Natal. Na despedida, o arcebispo emérito de São Paulo ocupou manchetes com a agenda de cidadania, equidade, solidariedade que pautou sua existência. Difícil não pensar que a derradeira contribuição de Dom Paulo à Humanidade tenha sido nos devolver o real significado da expressão direitos humanos, tão incompreendida quanto necessária neste Brasil da intolerância, da polarização, do radicalismo, das certezas. Que os valores do autodenominado amigo do povo tomem corações e mentes, agora e para sempre. Amém.

Fonte: O Globo

por: Flávia Oliveira

Foto: Marta Azevedo

Durante a vida, o frade franciscano colecionou epítetos. Foi chamado de cardeal da liberdade, dos trabalhadores e da cidadania; bispo dos oprimidos e dos presos; bom pastor; guardião dos direitos humanos. Cada uma dessas classificações contém ideais contidos no documento proclamado na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, como norma comum a ser alcançada por todos os povos, todos os países. A Declaração dos Direitos Humanos está entre os textos mais traduzidos do planeta. Tem versões em mais de 360 idiomas. Inspirou constituições de muitos Estados e jovens democracias.

Em seu Artigo 1º, determina que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Trata da liberdade sem distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição. Reconhece os direitos à propriedade, à presunção de inocência, à liberdade de ir e vir, à segurança, à privacidade, à liberdade de expressão, à instrução, a um padrão de vida capaz de assegurar o bem-estar. É atual e amplo o textão quase septuagenário.

No Brasil, nos últimos tempos, a expressão direitos humanos se apequenou. Em meio à polarização que grassa, principalmente nas redes sociais, foi apropriada por segmentos que, por ignorância ou má-fé, limitaram-na aos trechos de repúdio à tortura, condenação a prisões arbitrárias, compromisso com amplo direito de defesa e dignidade dos apenados. Distorceram-na a ponto de transformá-la em atributo negativo de quem ousa evocá-la.

O “pessoal dos direitos humanos”, em tom pejorativo, é associado a qualquer episódio agudo de violência urbana, por quem só considera legítima a tática da brutalidade, que fez do Brasil um dos campeões mundiais em homicídios e população carcerária. Em 2015, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 58.467 mortes violentas; há 584.361 encarcerados, um terço deles (36%) sem julgamento. O país mata muito, prende demais. No entanto, segue mergulhado na insegurança.

“A agenda de direitos humanos foi reduzida a duas falas: de um lado, estão os que a defendem; de outro, quem a estigmatiza. Direitos humanos envolvem educação, saúde, trabalho digno, mobilidade, serviços públicos, inclusão de negros, mulheres, LGBTs, direito à cidade. Têm dimensões política, econômica, cultural, social. Infelizmente, os estereótipos distanciam os defensores dos DH dos beneficiários, que são todas as pessoas, inclusive criminosos e policiais”, avalia Atila Roque, historiador, diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil de 2011 ao fim deste ano. Em fevereiro próximo, Jurema Werneck, médica, fundadora da ONG Criola, assume a função.

Nos últimos cinco anos, a Anistia ajudou a denunciar e dar visibilidade à epidemia de homicídios de jovens negros no país. Em 2017, já sob novo comando, o movimento planeja ações em segurança pública, continuação da campanha Jovem Negro Vivo, iniciativas sobre direitos das pessoas refugiadas e proteção a defensores de direitos humanos, especialmente os envolvidos em conflitos por terra, território e recursos naturais.

São camadas como essas que emergiram da despedida de Dom Paulo. Tomara, se perpetuem e materializem daqui para frente. O guardião dos direitos humanos, que dedicou sete décadas de seus 95 anos à defesa dos desvalidos, no fim da vida ressignificou o termo, tão incompreendido e maltratado. “No Brasil, é necessário lutar pelos direitos de todos e pelo fim da exclusão social”, declarou certa vez o franciscano. Melhor mensagem às vésperas da mais importante data do cristianismo não há. Que as festas — e a vida — sejam plenas de direitos para todos.

Feliz Natal.

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