No carnaval a casa grande (se) pinta e borda com o que nos pertence.

Se há uma época em que, sem pedir licença nem dar o devido crédito, o inestimável patrimônio cultural herdado de África passa a ser sinônimo de “brasilidade” é o carnaval. A pretexto deste, que é o maior espetáculo da Terra, cria-se uma conformidade tácita de que tudo pode em nome da folia que é momesca, portanto com raízes na mitologia clássica, mas se apropria de vários elementos culturais do povo preto. Pensemos: o que sobraria da maior festividade nacional se fossem suprimidas todas as contribuições de matriz africana e as elaboradas na diáspora?

Embora associada à subversão, a tradição carnavalesca remonta à Europa medieval, época de predomínio do teocentrismo cristão e poder da Igreja Romana, que condenava todas as celebrações ditas pagãs até legitimar a permissão para que seus fiéis extravasassem antes da Quaresma, criando a sensação de burla àquela ordem canalizando os “impulsos carnais” para, depois, serem submetidos a um período, bem mais longo, de restrição e jejum. 

 Já na modernidade, com a colonização portuguesa na América, projeto que contou com o aval e o interesse da Igreja católica, esta tradição ganhou novos sentidos em razão das interações culturais e da resistência dos grupos subalternizados com destaque para o que compunha a maioria numérica e escravizada. Distante do olhar austero da sede romana, a população colonial internaliza a ideia de que “não havia pecado do lado de baixo do Equador” e o entrudo se torna uma das primeiras manifestações carnavalescas ocorridas no Brasil. Seu caráter popular [leia-se preto] incomodava a elite da época que lutou para poder festejar o carnaval sem que tivesse contato com a gente preta, alegre e que usava o escárnio como crítica social.

No final do século XIX o pós abolição e a Proclamação da República, demandavam a refundação da sociedade a partir da lógica da inclusão e da cidadania, o que não ocorrera. O carnaval da então capital federal, Rio de Janeiro, passou a ser palco de disputas materiais e simbólicas e já não era possível conter seu traço marcadamente afro diaspórico, mesmo com as reiteradas tentativas de criminalizar o samba, a capoeira associando-os à vadiagem e lascividade. Para os egressos da escravidão e seus descendentes um dos mais importantes e urgentes significados do carnaval era expressar suas ambições e projetos de participação e cidadania na república recém fundada. O cunho de reivindicação, no entanto, não suprimiu a parte festiva, colorida e feliz apesar do negligenciamento do Estado brasileiro frente aos sujeitos que ficaram de fora de sua construção democrática. 

Ao longo do século XX a história do carnaval, em vários momentos, se encontra e se funde à própria trajetória da comunidade negra dos morros e quilombolas, da própria organização dos movimentos sociais em sua luta pela preservação do nosso legado e enfrentamento do racismo passando pela origem das escolas de samba e presença maciça de músicos pretos nas agremiações e bailes carnavalescos, o surgimento dos blocos afro nas periferias majoritariamente negras de Salvador, além  de movimentos culturais, como a Axé music.

 E aí, quem ousa negar? 

Curiosa e cínica é a necessidade posta pela branquitude de usurpar o protagonismo do povo preto neste espetáculo, a exemplo da camarotização da festa e o comércio de postos de destaque nas escolas de samba tirando de cena as mulheres negras das comunidades, que passaram a ensinar nossa dança mais emblemática às musas e rainhas de bateria brancas, que atraem holofotes e são aclamadas pelo grande público, mesmo sem o essencial samba no pé.

O racismo religioso constatado o ano inteiro dá lugar a uma espécie de “permissão” para entoar sambas em honra aos orixás e prestigiar as homenagens feitas às lideranças das religiões de matriz africana (dis)simulando uma sociedade que respeita a diversidade em suas várias nuances. Sabemos que a Quarta-Feira de Cinzas é o limite e tudo volta ao padrão de violência até o carnaval seguinte.

E o que dizer da tara em se “fantasiar de negro e negra”? Sim, o chamado blackface não sai da moda carnavalesca apesar da nossa paciência em explicar o que de fato significa tal prática diretamente atrelada à ridicularização e desumanização de pessoas negras. Dizer que negro, assim como indígena e cigano, não é fantasia é uma das mais repetitivas frases dos últimos tempos. Ainda assim as ruas são tomadas de nêgas malucas e  malandros de todas as idades denunciando o racismo recreativo.

Quisera que todo o entusiasmo carnavalesco se transformasse, pós festa, em disposição para iniciar/ aprofundar um efetivo letramento racial e que este, como resultado, promovesse a real inclusão das pessoas negras na cidadania que ainda nos é negada. Enquanto a apropriação dos nossos símbolos for naturalizada haverá a preservação da colonialidade e sua sanha meramente utilitária e vampiresca.

O debate sobre apropriação cultural não se resume àquilo que pode ou não pode, como a requentada polêmica sobre o uso de tranças, dreads ou de quem tem legitimidade para sambar e integrar grupos de pagode, mesmo porque vivemos num país que foi arquitetado pelas elites para passar a falsa ideia de paraíso racial e festa da mestiçagem como parte do projeto de nação. O que deve ser parte de uma comprometida reflexão coletiva é a seletividade feita em relação aos signos da cultura negra e o costumaz maltrato dos nossos no cotidiano.

Mesmo na dor o povo preto moldou a alegria, a sonoridade e a grandeza do maior espetáculo da Terra, fato. E mesmo aqueles que não merecem, usufruem de tal forma que a festa pode ser considerada  a arte de fazer a casa grande esquecer o que fizeram nos carnavais passados e ainda na condição de beneficiários de primeira classe.


* Historiadora, professora da Educação básica (SEC-BA), Mestra em Educação (PPGE-UEFS), feminista antirracista.


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