À Glória o que é de Glória

Nos deixa no dia de hoje, 02 de fevereiro consagrado à rainha das águas, um dos ícones da TV brasileira. Pelo prisma da afrocentricidade, virou ancestral e está no Orum, sem, no entanto, deixar de existir. 

Muito do que será dito nesse escrito é pensamento comum a milhões de pessoas  que a viram nas últimas 5 décadas brilhando no jornalismo em horário nobre e, na maior parte desse tempo, em condição de ineditismo e excepcionalidade haja vista ter sido a única pessoa negra desempenhando uma atividade intelectual e socialmente valorizada. 

Imagina então ser ainda a jornalista com o passaporte mais carimbado, colecionadora de vários momentos de encontros com povos e culturas? Sim, é a Glória!

Quando painho passou a, carinhosamente, me chamar de Glória Maria na infância de alguma maneira incutiu em mim o desejo de seguir os passos daquela mulher preta poderosa que aparecia na TV. Olhava sua desenvoltura e elegância e pensava que também poderia estar nesse lugar que parecia uma proteção com impermeabilidade anti racista.

Na era pré internet não era possível dimensionar o quão odiosa é uma sociedade diante de histórias exitosas de negros ocupando espaços que supostamente não lhes cabiam, ainda mais mulher retinta e crespa, o que me levou a sustentar essa ilusão da Glória Maria que não sofria violência racial. Lego engano.

É fato que o debate racial nunca fora pauta fortemente presente em sua trajetória e, quando passou a falar mais abertamente, causou certo incômodo pela postura não combativa que esperávamos que tivesse frente a esta opressão. Demorei a entender que este foi o caminho escolhido por ela para não sucumbir em um meio (racista e machista) que a elegeu como a negra única a serviço das estratégias discursivas da branquitude que reforçam falácias do mérito e esforço individuais, além da negação do que chamam de vitimismo atribuído às pessoas negras.

“Quem não é preto nunca vai entender o quanto o racismo dói na alma”. Quando acionou a lei Afonso Arinos para denunciar racistas que a impediram de adentrar num determinado lugar para fins profissionais, sabia que sua voz era necessária e que somaria à militância organizada num momento de reabertura democrática propício ao debate racial. Optou por trilhar o caminho da excelência profissional dando tapas diários na cara dos racistas que a viam exuberante na cobertura dos eventos mais importantes ou entrevistando figuras célebres de todos os campos.

Em sua vida pessoal discreta, sua Glória foi tornar-se mãe de duas meninas pretas às quais assegurou a dignidade que potencializa existências, um desejo de todas as pessoas negras, especialmente, de mulheres negras, que integra o coletivo dos que ainda lutam por uma vida essencialmente digna. Isso não é a Glória?

A vida me levou para a docência ao invés do jornalismo, mas é dela, a “repórter que se acha” (fala que costumava ouvir das clientes da minha mãe sobre negros em lugar de destaque, como Pelé e Glória Maria) as referências de altivez, insurgência, auto estima e elegância cruciais à minha trajetória muito antes do termo representatividade ganhar popularidade, como atualmente.

Quantas Glórias este país que nos odeia- e está estatisticamente provado- passou a ter depois da repórter negra bem sucedida? Hoje temos um telejornalismo mais diverso, com mais dos nossos nas bancadas como apresentadores, assinando matérias e editoriais de grande relevância, nos bastidores das produções do audiovisual. O pioneirismo desse protagonismo é, inegavelmente, dela.

E assim será por muitas gerações para a Glória do povo preto.

Glória Maria, presente.


* Historiadora, professora da Educação Básica ( SEC-BA), mestra em Educação ( PPGE-UEFS), feminista antirracista.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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