Este texto, originário de conversas intelectuais junto ao cientista social Felipe Oliveira Campos, tem como propósito apresentar um entendimento mais amplo acerca do rótulo “Música Preta Brasileira”, para além da ideia simplificada de raça que cerceia o termo, reduzindo sua interpretação a uma ingênua associação entre fenótipo e sonoridade.
Considerando as culturas musicais-dançantes urbanas que emergiram nos últimos 40 anos – como Rap, Funk, Pagode, Samba-Reggae, por exemplo –, o que se percebe é que elas estão profundamente enraizadas nos sistemas culturais africanos e afro-diaspóricos (cuja música e dança são uma forte expressão), seja Bantu e/ou Jeje-Nagô ou Iorubá, ainda que em constante relação com outras culturas e sistemas.
As musicalidades negras podem ser de regiões distintas, com organizações diferentes, mas convergem na concepção. É uma elaboração que tem como consenso estético a exploração do baixo (timbre grave) e o realocamento do ritmo, que se posicionam em primeiro plano diante de outros elementos que compõem uma música (harmonia, melodia e exploração das alturas). Na relação sociossonora que emana dessa criação está um dos pontos que nos permite entender “Música Preta Brasileira” não somente como classificação comercial de gênero musical, mas como um conceito histórico.
Os sons povoam nosso imaginário e a música é um conjunto de sons organizados. Por isso, os sentidos atribuídos à música são dados em consonância com as culturas específicas que moldam os imaginários sonoros. Entendendo cultura, de acordo Stuart Hall no livro Da diáspora – identidades e mediações culturais, não como acumulação de realizações de uma civilização nacional, tampouco propriedade de indivíduos ou grupos sociais. Sim, como processo estratificado de embates, lutas por significado. Dessa forma, cultura remete a estratégias pelas quais sujeitos fornecem sentido e vida para si próprios diante da realidade. Partindo desse ponto, o que difere uma cultura musical de um gênero musical? O que aproxima ambos?As classificações mais comuns (Samba, Pagode, Axé, Funk etc.) seguem convenções e interesses de mercado. O pesquisador Felipe Trotta em seu livro O Samba e suas fronteiras: Pagode Romântico e Samba de Raiz nos anos 1990 aponta que, na música popular-comercial, as classificações de gênero são determinadas por estilos de voz, formas de cantar, combinação de instrumentos, temática das letras e similaridades sonoras. Já o historiador Marcos Napolitano em um escrito denominado História e Música Popular: Um mapa de leituras e questões, explica que não se define gênero apenas pelo critério do ritmo; deve-se levar em conta determinadas experiências musicais, como a dança e a identidade cultural. Essa definição de Napolitano, na qual ele aponta que devemos considerar “determinadas experiências musicais, como a dança e a identidade cultural”, é um fator relevante que chama atenção, pois considera a vivência mediada por uma relação sociossonora como critério. Segundo o etnomusicólogo Kazadi Wa Mukuna, em sua tese de doutorado O contato musical transatlântico: contribuição Bantu na música popular brasileira, uma cultura musical é determinada pelos traços estilísticos. Estes traços são marcados por particularidades, como estrutura fixa de organização dos instrumentos; alinhamento da sonoridade e principalmente hierarquia sonora. Os traços estilísticos, então, nos revelam um tipo sensorial. É nessa especificidade, onde situa-se uma importante característica de identificação de grupos sociais específicos, que encontramos o que constitui uma cultura musical. Entre tantas idiossincrasias, também nos identificamos por sensações diante dos sons. Por isso, antes de uma escuta individual, a escuta coletiva em cerimônias nos coloca em comunhão com os pares.
Retomo aqui uma importante argumentação de Muniz Sodré, no livro Samba, o dono do Corpo: “[…] a informação transmitida pelo ritmo não é algo separado do processo vivo dos sujeitos da transmissão-recepção. Transmissor e receptor se convertem na própria informação advinda do som. O som, cujo tempo se ordena no ritmo, é elemento fundamental nas culturas africanas e afro-diaspóricas. Isto se evidencia, por exemplo, no sistema Gegê-Nagô ou Iorubá, em que o som é condutor de axé, ou seja, a energia que possibilita o dinamismo da existência”.
Colocando essa argumentação em afinação com as considerações de Mukuna, que aponta que na instrumentalidade da cultura musical Bantu presente nos conjuntos musicais o tambor principal é de timbre grave, entendemos que o ritmo e a sonoridade de baixa frequência são basilares e constituem grande presença marcante na escuta coletiva em diversas culturas do Atlântico Negro.
Este entendimento se ancora na promoção da comunicação direta com os corpos dos ouvintes em circunstâncias cerimoniais, seja “festa”, “baile”, “cortejo” etc., considerando as diversas comunidades negras como origem e destino desse produto sonoro. Atendendo a esta colocação podemos nos deparar com uma questão delicada: Não pretos podem realizar Música Preta Brasileira?
De maneira geral sim, até porque o juízo não faz parte do que o artigo pretende pautar como relevante. Nesse quesito, o que interessa são devidas atenções à malha fina presente na ideia de “popular”, que emerge no final do século XIX e se firma no século XX, enquanto conceito e serve como um modus operandi de tratativa cultural por parcela considerável de agentes realizadores. Dessa forma, entende-se por “popular” uma massificação com deslocamento e formação de um “novo tradicional” inventado a partir do amálgama de elementos culturais diversos que, subordinados à noção de branquitude, pode inclusive dispensar os agentes originais dessa prática cultural. Vale apontar que reporto “branquitude” como um constructo ideológico de poder, tal como exposto por Lia Vainer Schucman em Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo, no qual, “os brancos tomam sua identidade racial como norma e padrão e dessa forma outros grupos aparecem, ora como margem, ora como desviantes, ora como inferiores”. E, no caso da música, essa perspectiva atende a dinâmica de diluição dos sentidos em prol de um projeto estético e político que não nos reconhece como sujeitos ativos da história.
Trago este ponto de vista a partir da apresentação de Kazadi Wa Mukuna, para quem as culturas tradicionais de origem africana na modernidade foram transformadas em populares. Em contrapartida, no decorrer do século XX, nota-se um imenso esforço inventivo de originalidades artísticas que tensionam essa transformação a partir da noção de “Atlântico Negro”. Essa perspectiva, apresentada por Paul Gilroy em seu clássico livro O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência, versa que as culturas negras da diáspora mostram-se abertas, inacabadas, internamente diferenciadas, por serem formadas a partir de múltiplas fontes por movimentos que entrecruzam.
“Música Preta Brasileira” aporta consigo não somente os elementos de composição musical que classifica gênero ou cultura, também possui historicidade que desvela as tensões raciais na dinâmica cultural brasileira. O marcador racial “preta” no epicentro do termo, contrapõe o “popular”. Ou seja, são diferentes concepções de assimilação do diverso com distintos protagonismos. Na relação sociossonora, o “popular” da branquitude subordina, o Atlântico Negro coaduna, propondo diálogo com variados sistemas culturais sem escantear seus agentes e/ou submeter concepções a critérios hierárquicos. Por isso que o rótulo é simplório, e se faz necessário o entendimento enquanto conceito histórico, pois seu propósito objetiva transformações reais nas estruturas sociais.
Assista ao vídeo do historiador Guilherme Botelho no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF08HI27 (8° ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas; EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).
Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).