O amor que liberta nasce de uma mulher

Se recebi algum amor, foi do universo feminino, da minha mãe, minhas avós, minhas tias e amigas; aprendi que amor recebido não se agradece, se retribui

Por Juliana Gonçalves Do Calle2

Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor.

Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público…”

Esse é o segundo parágrafo do texto Vivendo de Amor da escritora afro americana, teórica feminista e crítica cultural, bell hooks (o nome é grafado em letras minúsculas porque bell acredita que a sua escrita é maior do que ela mesma).

Essa falta de amor relatada pela escritora seria o resultado final para as mulheres de um processo histórico fincado à época da escravidão.

Em 2013, refleti sobre isso e produzi o texto “Afetividade negra – por que beijar sua preta em praça pública é um ato de resistência’’. Ali escrevi essencialmente sobre o amor romântico e heteronormativo.

Recentemente, relendo o texto, me peguei pensando de onde vem e veio o amor que recebo ou já recebi na vida?

Não sem espanto, percebi o óbvio: se recebi algum amor, e estou certa que sim, foi das entranhas de minha mãe, da pele enrugada da avó, dos sorrisos largos de minhas irmãs, dos afagos das tias. O amor que já recebi no mundo veio de fêmeas, de energias femininas que criam ventos, rios, mares, lama…

Difícil imaginar algo mais revolucionário e transformador do que o amor que nasce de uma mulher pela outra.

Venho de uma tradição de mulheres negras que sempre cuidaram umas das outras. Nos acarinhamos certas de que a tal “rivalidade feminina” é mais uma criação do sistema machista para nos desestabilizar. Unidas podemos o que? Tudo.

Há uma parcela significativa da sociedade que nutre ódio por mulheres que se amam. Aprendi recentemente com a poetisa Formiga, do coletivo Fala Guerreira de São Paulo-SP, que lésbicas são tão violentadas porque representam uma ameaça real ao patriarcado.

Amar outra mulher é um ato revolucionário por si só.

E aqui não falo restritamente do amor lésbico, embora dentro da ideia de amor romântico, seja a relação que mais representa essa relação do amor com o feminino.

Falo também das relações cheias de amor entre mães, filhas, avós, amigas e irmãs. Sem falar das manas, companheiras de caminhada, escolhidas por mim, mas principalmente as que me escolheram ao longo do caminho para amar…

Se há cura para as mazelas do mundo que rasgam as peles pretas, se há acalanto para as dores de corpo e alma, sem dúvidas, a resposta passa por nós mulheres, sobretudo, nós negras. Somos frutos também de um amor que emerge de uma força ancestral.

Aprendi com as nossas mais velhas que amor não se agradece, se retribui.

Hoje queria abraçar todas as mulheres, irmãs de luta e de fé, aquelas que não me deixam desistir, me acolhem, me ensinam… Todas as mulheres – com ou sem buceta – o feminino afinal transcende o sexo, é energia vital.

São Lucianas, Anas, Renatas, Julianas, Janaínas, Suelis, Joices, Marianas, Adrianas, Jéssicas, Kátias, Djamilas, Carolines, Simones, Dorotildes, Marias, Maras e tantas que me ensinam a amar e, sobretudo, que sou sim merecedora de amor.

O nosso amor cura. E quando uma preta conquista alguma coisa, eu conquisto junto. Isso é senso de comunidade. É amor.

P.S.: Desculpem, mas não estou cabendo em mim. Acabo de vir da estreia do documentário Mulheres Negras: Projetos de Mundo, de Day Rodrigues e Lucas Ogasawara. Depois de ver tantas manas, de estar entre as minhas, de me sentir em casa, só quero ressaltar que não há transformação real nessa sociedade, não há revolução que não passe por nós, mulheres pretas.

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