O Aniversário é de Jerusa, Mas o Presente é Nosso

Um Dia Com Jerusa abriu a Mostra Imaginação Como Potência, tema central da 23a. Mostra de Cinema de Tiradentes.  Dirigido pela cineasta Viviane Ferreira o longa é um compromisso poético com um cinema político de oralidade que não quer nem precisa fazer  concessão à crítica. Por isso mesmo já nasce histórico: Fruto do primeiríssimo e até agora único edital de Longa B.O. Afirmativo da Ancine, de 2016; o longa traz uma equipe feminina e majoritariamente negra que teve a primeira oportunidade na tessitura de um longa estrelado por Lea Garcia, referência histórica do cinema nacional. Vale destacar que do alto de seus 86 anos, dos quais 68 como atriz, é a primeira vez Léa  que protagoniza uma história concebida e executada por mulheres negras. Um filme para ser celebrado. 

Por Viviane Pistache para o Portal Geledés 

23ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES – SEMINÁRIO ENCONTRO COM OS FILMES/Bate-papo do filme UM DIA COM JERUSA, com a presença da diretora e convidados. • Crítica convidada: Letícia Bispo | DF Mediadora: Lila Foster – curadora | DF- Foto Netun Lima/Universo Produção

Com preparação de elenco  de Valdineia Soriano, atriz do Bando de Teatro Olodum, o filme enseja o encontro de gerações e companhias de teatro negras: Teatro Experimental do Negro e Capulanas Cia de Arte Negra, de Léa Garcia e Débora Marçal respectivamente. Trazendo novamente a parceria desta dupla de atrizes  vivida no curta-metragem Dia de Jerusa, de 2014, que projetou Viviane Ferreira como potência negra na cena do cinema nacional.

Assim, o longa revisita a jornada de trabalho de Sílvia, que colhe opiniões numa pesquisa de sabão em pó quando bate a porta de Jerusa, no dia em que ela completa 77 anos e espera ansiosa pela família que não virá, elegendo a Sílvia a providencial companhia que acolhe suas memórias ainda que em meio ao protocolar expediente. 

O argumento do curta se agiganta no longa, possibilitando novas camadas para Jerusa e Sílvia, tornando o encontro infinito de possibilidades de sentir e refletir, numa polifonia onde deságuam cinema, teatro, poesia e candomblé. 

O longa possibilita tanto o aprofundamento quanto novidades sobre vida laboral de Sílvia, desde o modo como o grupo de pesquisa é treinado para entrar nas casas considerando territorialidades e cartografia dos afetos. Destaque para a breve, porém afiada participação de Tássia Reis como a formadora da equipe. 

O mundo do trabalho é apresentado com inúmeras camadas: Enquanto o curta termina com a esperança subjacente à aprovação no vestibular, o longa apresenta a dura realidade de Sílvia, que mesmo possuindo um diploma de graduação, ainda está submetida a um subemprego enquanto aguarda ansiosa  o resultado do concurso prestado para ser professora de História.

Mesmo amargando a dureza de um subemprego, Sílvia encontra refúgio  no ambiente de trabalho a partir do namoro com sua colega de trabalho. Para vivenciar sua sexualidade, Sílvia precisa se esquivar da lesbofobia de sua família evitando visitas enquanto dribla as cobranças por suas ausências. 

Sílvia percorre a cidade sob as ameaças do machismo e encontra descaso do poder público que paira sobre os corpos negros que moram nas ruas. Ainda que desamparadas, o filme abre um sorriso para o casal de velhinhas que se aquecem sob os cobertores, para o poeta cuja palavra é um ode à genialidade de figuras como Arthur Bispo do Rosário. 

A arena pública também é ocupada por Jerusa na companhia inseparável de sua câmera fotográfica. Encontra ainda na caminhada pelo Bexiga, afetos antigos como o de Yoyo singelamente vivido por Antônio Pitanga. 

Sílvia bate então à porta de Jerusa. Ainda que os elementos centrais da trama nos são conhecidos, somos surpreendidos pela riqueza da herança que está no seio da família Anunciação desde a avó de Jerusa: a possibilidade do registro fotográfico, contrariando uma história de silenciamentos e apagamentos de memórias e ainda uma casa de herança matriarcal e não  matrimonial. 

23ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES – SEMINÁRIO ENCONTRO COM OS FILMES/Bate-papo do filme UM DIA COM JERUSA, com a presença da diretora e convidados. • Crítica convidada: Letícia Bispo | DF Mediadora: Lila Foster – curadora | DF- Foto Netun Lima/Universo Produção

Apesar do fio condutor que rememora o curta, percebe-se que o longa deliberadamente desafia algumas regras clássica de roteiro com consciência porque quer honrar memórias ancestrais e não reprisar fórmulas comerciais. Um exemplo disso é a recusa do uso de flashbacks para ilustrar as memórias que a griô Jerusa confia  a Sílvia. De maneira radicalmente ousada, as experiências da anciã são reveladas a partir do transe de Sílvia num encontro sublime entre oralidade e axé. 

Viviane Ferreira conta que durante toda a sua feitura o filme se colocou como canal aberto para o aproveitamento do repertório e experiência de vida do elenco e da equipe. O dispositivo dramático do transe surgiu em completa comunhão com a condição de rodante da atriz Débora Marçal que é iniciada no candomblé. Débora, que  é dançarina, também emprestou ritmo à narrativa. 

Lea Garcia, na condição de testemunha ocular da vida negra por décadas, emprestou à fotógrafa Jerusa muito  do que viu e viveu. Numa profícua intertextualidade, o filme traz fotos da carreira de Léa para o acervo de imagens registradas por Jerusa. Propositadamente destaca-se uma foto de Serafina, personagem vivida por Lea na obra francesa “Orfeu Negro” que em 1959 ganhou Palma de Ouro em Cannes e no ano seguinte venceu o Oscar e o Globo de Ouro na categoria de melhor filme estrangeiro para a França. 

Um fato curioso é que apesar de Lea ter sido escalada desde sempre para reviver Jerusa, a Chicungunha quase roubou a atriz do filme. Lea conta que durante as gravações tinha o corpo ainda muito inchado e dolorido pela doença gerando traços de gestos que estão cunhados no corpo de Jerusa. O corpo que convalesce de uma epidemia encontra a juventude de um corpo que sangra no processo de aprender se é melhor manter as manchas perenes das experiências acumuladas ou a vivacidade fugaz da cor das experiências vividas.  

Segundo Aldri Anunciação, autor da peça Embarque Imediato estrelada pela família Pitanga, é trágico o afastamento entre velhice e juventude. Em caráter redentor, a velhice sábia, lenta e solitária de Jerusa encontra a juventude ansiosa de Sílvia. O longa promove a reconciliação entre gerações agraciando Jerusa com a possibilidade de ter companhia no dia do seu aniversário enquanto confere a Sílvia o galardão de  ser eleita a herdeira derradeira das memórias ancestrais de Jerusa. 

Jerusa abre cada cômodo de sua casa e de sua alma à Sílvia enquanto nos revela a história de gerações negras que fundaram o bairro Bixiga revisitando becos e rios da História negra que foi soterrada por uma narrativa de apropriação simbólica e física por italianos. Jerusa guarda provas  incontestáveis do passado, inclusive um poço com um bocado do Rio Saracura, hoje canalizado e invisível. (Destaque para o parêntese que o filme abre rapidamente para a história de Pizzolato, figura negra e africana cuja resistência na travessia diaspórica incluiu um feitiço que trouxe uma providencial tempestade de areia. Uma história que certamente merece filme.)

23» MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES – Lea Garcia – Foto Leo Lara/Universo Produção

Some-se a generosidade de Jerusa à de Lea Garcia de compartilhar sabedoria com um set que veio muito depois  e que mesmo após décadas de experiência encara cada trabalho como novo alimenta a generosidade de Jerusa. Viviane nos conta que numa consultoria de roteiro que teve na França, foi questionada por um intelectual argelino-brasilleiro, porque Jerusa era tão generosa. A resposta de Viviane foi rápida e com com origem no transe: Jerusa precisa de paz para a viagem derradeira. 

O processo de gravação do longa foi acompanhado pela documentarista Everlaine Moraes gerando outro filme dentro do filme. Tomara que acontecimentos incríveis durante a feitura do longa sejam revelados ao público, como as sessões de drenagem linfática que Lea precisou viver para aliviar o inchaço e as dores, gerando o dilema: Como burocratizar um fato desses em relatórios de prestação de contas? Vale lembrar que é um filme sobre o tempo-corpo da velhice. Um tempo expandido que  respeita o peso de uma trajetória já bem grisalha. 

Apesar da ousadia e elegância das escolhas narrativas, o longa enfrentou outros preocupantes percalços que devem ser destacados: Como o orçamento além de ser curto estava defasado devido à grande demora da liberação da verba, não havia mais verba para garantir a câmera e o conjunto de lentes escolhidas pela decupagem cuidadosa de Lílis Soares. Como Viviane é despachada, tentou fazer um escambo entre créditos por empréstimo de equipamentos. Bateu em algumas portas, mas recebeu vários nãos retumbantes. 

Como Viviane também é articulada, colocou suas questões para uma grande realizadora que bateu nas mesmas portas e em quinze minutos conseguiu os equipamentos. Se de um lado há motivos para celebrar a garantia das escolhas dramáticas da fotografia sem dispêndio de uma verba que não existia, por outro há que se problematizar e denunciar a violência do racismo estrutural que impede que corpos negros possam fazer demandas e ser atendidos. 

23ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES – A diretora Viviane Ferreira,e as atrizes Lea Garcia, Bruna Anjos e Debora Marçal – Foto Leo Lara/Universo Produção

Encerro minhas considerações assumindo o encantamento experienciado com o filme e com a entrevista que fiz com Lea Garcia, Débora Marçal e Vivi Ferreira para este portal. Acho importante suspender a crítica e celebrar um longa realizado pela única mulher negra contemplado no primeiro e único edital afirmativo em tempos de retrocessos políticos. Estou agora mais interessada em enaltecer o desafio de contar histórias simples porém complexas  que nos tocam em nossa mais íntima ancestralidade e afetos de uma negritude compartilhada; do que apontar eventuais senões da obra. Eles que lutem. 

 

Viviane Pistache. Doutoranda em Psicologia e Cinema pela USP. Roteirista da O2 Filmes e crítica de cinema e teatro em parceria com o Portal Geledés. (Foto: Arquivo Pessoal)

Leia Também:
Tempo de Pitanga: Diferenças entre Cinema de Ancestralidade e Cinema de Herdeiros

 

 


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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