Sou dessas pessoas fissuradas pela ideia de cruzar a linha do tempo da vida em diálogo com as diferentes gerações. Adoro o rito de passagem de uma etapa da vida para outra: curti ser criança, me esbaldei sendo adolescente, me nutri da petulância juvenil, vivi o medo dos 30 e estou super apaixonada por essa coisa que chamamos de fase adulta. Sim, mega sonho em ser uma velhinha, de pele reluzente e cabelos alvos… a única dúvida é se os terei em coque como os da avó paterna ou Black Power curto como os da avó materna. O grande lance de dialogar com as mais diferentes gerações, enquanto cumprimos nossos ritos de passagem, é a possibilidade indispensável em nos aprimorarmos a cada experiência que acumulamos sobre nossa existência.
Foi do lugar de quem entende o cinema, dentre tantas outras coisas, também como um espaço para dar vazão a simples existências de sonhos oriundos de pessoas portadoras de corpos reluzentes tão qual a cor da noite, como o meu, que acompanhei a 50ª do Festival de Brasília. Acredito no potencial que a imagem tem para dar vazão a construções simbólicas que alimentem a existência das pessoas, em diálogo e em interação. Essa foi a crença que me levou a escolher o cinema como oficio e lócus de escoamento do meu imaginário de mundo.
E lembro-me da minha própria imagem ao sair da sala de cinema , após a sessão do filme Vazante, de Daniela Thomas. Olhei para os lados, e corpos negros como o meu, que não abandonaram a sessão, saíram curvados e desacreditados. Vi corpos imbuídos de branquitude exalando sensação de que acabara de ver uma obra prima. Vi corpos não negros incomodados, com olhares cabisbaixos e envergonhados do que acabara de assistir. Eu saí acalentada pelos gritos do silêncio do meu interior. Estava desapontada. Mais do que isso, havia acabado de ver que sigo sofrendo da síndrome do engodo histórico. Tenho refletido, acompanhado e participado de toda a movimentação da setor audiovisual para dar conta da construção de narrativas que considerem a complexidade da existência das pessoas negras na face da terra. Presido a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, com a crença de que nós pessoas negras podemos, queremos, temos o direito e devemos contribuir com uma nova composição imagética em torno de nossa existência. E, por isso, a APAN existe, para garantir um espaço de diálogo que seja possível a nossa presença como narradoras(es) de nossa existência. Temos consciência da existência das pessoas não negras que seguem consternadas com a ausência de pessoas negras em determinados espaços ou da existência de construções imagéticas contemporâneas acríticas aos sentidos impressos nos corpos negros pela mentalidade colonial e escravocrata. Fui alertada da possibilidade de estar sofrendo da “síndrome de engodo histórico” ao ver Vazante e constatar que, mesmo do olhar de uma cineasta que é conhecida pela sua sensibilidade ao construir imagens sobre a existência humana, a simples existência da humanidade da pessoa negra a assombrou e foi tolhida no campo de suas lentes. O único conteúdo que escoa, de Vazante, é a reiteração de que para a existência negra, da concepção imageticamente, apresentada no filme, tudo permanece como dantes.
Não há um respiro de câmera capaz de acolher a consternação da mulher negra mantida para o estupro diário. Não há espaço para demonstração de solidariedade entre aqueles personagens que seguiam aprisionados no sistema escravocrata. Não há espaço para o jovem negro se mostrar, também violentado, a cada momento que sua mãe segue para a sessão de “estupro de cada dia”.
Não fui ao debate. Saí do cinema com a certeza de que nossa existência naquele espaço deveria receber meu foco de atenção, tinha convicção do mais do mesmo que o filme se mostrara e não precisava das justificativas que alimentaria a “síndrome de engodo histórico”.
A realidade é que não estamos prontos, o setor audiovisual brasileiro não está pronto para dar resposta à necessidade de conviver com a complexidade da existência negra nas telas. É esse assombro que vaza do texto da Daniela Thomas, em defesa do próprio filme na Piauí. É real o esforço das pessoas não negras, com acesso aos milhões para realizar filmes, em buscar narrativas que contemple a audiência negra. Tão real quanto o assombro histórico que a nossa presença causa nos espaços de articulação e negociação desses “milhões”.
Seria uma heresia afirmar que nada no filme me agrada, e como reconheço a obra como processo, afirmo que, do processo de vazante, a credibilidade para acessar 6 milhões e garantir tempo de criação, equipe e maquinário que me permitam construir imagens que se assemelham à pintura, me agradaram em demasia. Cada frame de Vazante é uma obra de arte e pode ser transformado em um quadro.
As minhas questões são: quais seriam as pessoas que dedicariam sua existência a terem prazer em decorar suas salas com a imagem de execução de um jovem negro amparado pelo corpo de sua mãe, também executado? A quem interessa a propagação da ideia de que as pessoas negras são violentas, agressivas e por isso não pertencentes a determinados espaços de consumo e produção de “arte”? Por que raios a presença de pessoas negras na 50ª edição do Festival de Brasília tem causado mais incomodo do que nossa ausência histórica do circuito de distribuição de recursos, prestígios e status do audiovisual? A quem interessa desconstruir a imagem de um movimento, que atravessa gerações pautando a importância de novas construções imagéticas dos corpos negros, como o movimento negro? O porque grandes veículos da mídia se dispuseram a defender com unhas e dentes um único filme? Porque pessoas não negras de esquerda que aplaudiram recentemente o discurso de Ângela Davis, em visita à Bahia, não conseguem descolonizar suas mentes e argumentos sobre a existência e expressão das pessoas negras? Onde está a máquina de moer não negros, em domínio dos críticos negros, para submeter a equipe de uma filme a tal crueldade especulada? Porque será tão difícil para alguém enfrentar o processo de Vazante como um rito de passagem? Sim, um rito de quem passa da fase da vida de quem só enxergava a existência negra pelo imaginário construído nas veias do colonialismo para a de quem se dispõe a contribuir com a reconstrução desse imaginário coletivo sob a perspectiva da decolonialidade. Seria a não sapiência do que a assombra?
O assombro, que vaza de nossa existência e desloca a branquitude do seu histórico lugar de conforto, é a incompreensão dos não-negros de como é possível uma coletividade historicamente açoitada, de forma requintada e com aprimoramentos estéticos e tecnológicos, insistir em seguir simplesmente existindo.
Mas não há segredos no que nos faz seguir e existir, sonhamos em ser velhas(os), em termos cabelos brancos e pele reluzente como a noite; é em nome de nossos sonhos, que não aplaudimos imagens acríticas de execuções de corpos negros.
Nossa existência cheira à “café com canela” e NADA nos fará desistir de nós mesmos. E que sigam assombrados com a nossa presença; ela é real, não é ficção.
Sobre a Autora
Viviane Ferreira , cineasta negra e baiana
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