‘O Avesso da Pele’: livro que debate racismo é censurado em escolas de 3 estados por reação equivocada ao conteúdo, alertam especialistas

Estudiosos afirmam que trechos que abordam relações sexuais e a sexualização dos personagens podem ser o principal motivo da censura. Estados alegam que a obra apresenta 'expressões impróprias' para menores de 18 anos.

FONTEPor Emily Santos, do g1
Publicado em 2020, "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, conta a história de um jovem que teve o pai morto em uma abordagem policial (Foto: Carlos Macedo/Feira do Livro e Reprodução/Redes Sociais)

Especialistas ouvidas pelo g1 afirmam que a justificativa apresentada pelos governos do Mato Grosso do Sul, de Goiás e do Paraná para recolher os exemplares do livro “O Avesso da Pele” das escolas públicas é falha, fraca e escorada no racismo, repetindo procedimento de censura típico dos anos da Ditadura Militar.

As secretarias de educação afirmam que a obra apresenta “expressões impróprias” para menores de 18 anos, e que, por este motivo, precisaria ser reavaliada ou retirada das bibliotecas das instituições.

Entretanto, os especialistas ouvidos pelo g1 argumentam que há, entre outros pontos, confusão entre o interesse privado e o público na ação desses governos estaduais, já que a obra é premiada e foi selecionada para distribuição escolar pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC).

A obra consta ainda na lista de livros obrigatórios do vestibular do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), considerado um dos mais concorridos de todo o país.

No Rio Grande do Sul, a diretora de uma escola chegou a pedir a retirada do título da instituição, mas o governo estadual o manteve na sua lista de obras. (Veja mais abaixo.)

“Me parece uma decisão baseada em um gosto pessoal, de alguém que não gostou da obra e automaticamente acha que as outras pessoas nem deveriam ter acesso a ela”, afirma a professora Carla Risso, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

O livro, que foi publicado em 2020 e venceu o Prêmio Jabuti (prêmio mais importante do setor) no ano seguinte, narra a história de Pedro, que teve o pai assassinado em uma abordagem policial. A obra apresenta questões raciais que vão desde o racismo estrutural à violência policial, e trata ainda da fetichização e sexualização de corpos negros.

Espanto com a censura

Jeferson Tenório, autor do livro, ficou surpreso com a reação contra a obra. “Me causa espanto porque nós já temos tão poucos leitores no Brasil e deveríamos estar preocupados em formar leitores, e não censurar livros”, declarou em entrevista ao programa Ao Ponto, da Globonews.

Em suas redes sociais, o escritor classificou ainda a medida como “uma violência e uma atitude inconstitucional”. Segundo Tenório, “não se pode decidir o que os alunos devem ou não ler com uma canetada”.

O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras. Não vamos aceitar qualquer tipo de censura ou movimentos autoritários que prejudiquem estudantes a ler e refletir sobre a sociedade em que vivemos”, escreveu Tenório.

Um abaixo assinado online contra a censura reuniu mais de 6,4 mil pessoas, incluindo personalidades como Chico Buarque e Drauzio Varela.

De acordo com a professora e comunicóloga Luiza Andrade, os trechos que abordam relações sexuais e a sexualização dos personagens podem ser um dos principais argumentos para a censura da obra, mas essa justificativa é falha. Políticos de direita chegaram a afirmar que o livro possui “linguagem pornográfica”.

Sim, os trechos são detalhados, mas não diferem em conteúdo de livros de literatura infantojuvenil facilmente encontrados nessas mesmas bibliotecas escolares. Há uma diferença, no entanto, na linguagem usada para descrever as cenas, com palavras que muitos consideram chulas ou vulgares, o que pode, talvez, fazer com que a obra seja entendida por alguns como inadequada para o ambiente escolar.

— Luiza Andrade, professora e comunicóloga.

Outra diferença apontada pela especialista é o foco claro na crítica imposta pela reflexão diante da cultura de fetichização de determinados corpos.

Luiza reforça que não concorda com essa linha de raciocínio, mas acredita que seria um argumento facilmente aceito entre “os defensores das morais e dos bons costumes que buscam cercear debates sobre os direitos das minorias e a repressão sofrida pela população negra”.

“Não se trata apenas sobre como o livro é escrito, mas sobre a mensagem que ele quer passar, sobre o que aquele material ensina aos alunos, que tipo de questionamento estimula e a quais conclusões os estudantes vão chegar ao consumir aquela obra”, defende Luiza.

‘Retirar livros é ato censório’

Daniela Osvald, coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), defende que a mesma tática foi utilizada no país durante a ditadura militar entre as décadas de 60 e 80. Ela acredita que a decisão das secretarias de educação pode, sim, ser considerada censura.

O livro integra um programa do governo federal e já havia passado por uma avaliação realizada por uma banca especializada. Não é uma obra desconhecida e havia um motivo para ela integrar a coleção das bibliotecas das escolas. Essa é quase uma censura institucional porque está sendo institucionalizada por um governo.

— Daniela Osvald, coordenadora do Obcom.

O que diz a editora

A Companhia das Letras, editora responsável pela distribuição do livro em todo Brasil, também manifestou indignação com a decisão das secretarias de ensino.

Para ela, “a retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo”.

Alvo de ataques

O livro vem sendo alvo de ataques desde 2022, quando Tenório sofreu ameaças de morte ao anunciar que faria uma palestra em uma escola de Salvador. Na época, o escritor revelou que recebeu mensagens anônimas que diziam que caso fosse ao local, ele teria o “CPF cancelado”, ou “teria de fugir do país” para não ser metralhado.

Mais recentemente, na semana passada, a diretora de uma escola de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, pediu a retirada do título das instituições de ensino da cidade através de um vídeo na internet. Após a publicação, a 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), ligada à Seduc-RS, chegou a orientar a retirada dos exemplares da biblioteca da escola até que o MEC se manifestasse.

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Dias depois, porém, a secretaria estadual emitiu nota afirmando que “não orientou para que a obra (…) fosse retirada de bibliotecas da rede estadual de ensino” e que “a 6ª Coordenadoria Regional de Educação vai seguir a orientação da secretaria e providenciar que as escolas da região usem adequadamente os livros literários”.

Livro faz parte de programa do governo federal

“O Avesso da Pele” chegou às bibliotecas escolares por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), sistema do Ministério da Educação (MEC) que seleciona e distribui gratuitamente livros didáticos para as escolas públicas brasileiras.

O programa foi estabelecido no formato atual por um decreto de 2017. Em resumo, ele funciona da seguinte forma:

  • O MEC publica editais com as características obrigatórias dos livros que serão adotados pelas escolas (número de páginas, conteúdo, formato etc.).
  • As editoras, então, começam a produzir obras que sigam esses critérios. Depois, podem inscrevê-las no programa.
  • O ministério, por meio da Secretaria de Educação Básica, avalia quais livros podem ser aprovados, quais estão “eliminados” e quais só precisam de pequenos ajustes.
  • Depois da análise de comissões técnicas pedagógicas, é formado um “cardápio de materiais” com todos os que passaram pelo crivo dos especialistas.
  • As escolas recebem o tal “cardápio” e escolhem quais livros adotarão.
  • O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do governo federal, negocia os preços com as editoras e compra as obras, para que sejam direcionadas gratuitamente às redes de ensino.
  • Por último, os correios distribuem os livros para cada colégio.

Veja o infográfico abaixo:

Como funciona o PNLD? — Foto: Arte/G1
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