O Casamento do Ano

Há muito tempo venho devendo esse texto. Me preocupei com inúmeras outras coisas, compromissos, reuniões, aulas, seriados, vídeos no youtube. Procrastinei o máximo que pude, mas ele precisava ser escrito. Um texto sobe o casamento do ano, sobre uma festa inesquecível.

Enviado por Taís de Sousa Pereira via Guest Post para o Portal Geledés 

Foto: @DRE0316

Eu particularmente não gosto de casamentos. Minha pouca bagagem de vida impede que eu aprecie essa celebração cultural. Os motivos são muitos, são tantos, que renderiam outro texto apenas sobre casamentos. Este que aconteceu em outubro me marcou principalmente por me mostrar algo que eu já sabia, que eu criticava e critico até hoje: o fato de nós, seres humanos, sermos tão aquém daquilo que idealizamos ser o modelo de evolução do homem.

O casamento do ano começou a ser planejado muito tempo antes. A noiva vem de uma família tradicional soteropolitana de classe média alta. Junto com sua mãe, com a qual tinha um relacionamento relativamente divergente, pensou em tudo o que poderia fazer da sua festa um evento inesquecível para ela, para o noivo, para a família, para os convidados. Procurou a melhor igreja, o melhor cerimonial, o melhor vestido, as melhores flores, o melhor buffet, o padre mais engraçado e envolvente. Tudo do bom e do mais bacana para celebrar o amor entre ela e o noivo. Claro que nem tudo saiu como planejado, mas estava satisfatório.

Nada mais comum que uma jovem criada dentro dos preceitos cristãos sonhe com o dia do casamento. O irônico é nem ela, nem a família serem indivíduos que cultivem a fé. A meu ver, eles enxergam a festa do matrimônio como uma convenção social, uma oportunidade para demonstrar ao grupo social em que estão inseridos toda a sua bonança e prosperidade. Pude chegar a essa conclusão depois de ir a vários casamentos dessa mesma família. Cada um que acontecia era mais deslumbrante que o anterior. Parecia uma competição entre os primos, para ver quem faz a melhor festa, a mais grã-fina, com mais convidados da “alta sociedade” soteropolitana.

O evento de fato foi elegantíssimo. A noiva chegou com mais de uma hora de atraso, algo comum para noivas. Eu que tinha demorado de me arrumar propositalmente para chegar ao final da cerimônia fui trolada e tive que assistir todo o discurso do padre em pé, pois não havia mais lugar para me sentar. Ela chegou de limusine Mercedes-Benz, incrementando ainda mais sua beleza de salão. O noivo, coitado, assim como os outros convidados, deveria estar com o estômago fagocitando o fígado, esperando por sua amada. Ao fundo, havia uma orquestra de violinistas, que tocou a marcha nupcial, ou alguma outra música qualquer, eu não lembro muito bem. Nossa, foi bem excêntrico, teve até fogos de artifício ao final da fala do padre.

O salão de festas então, nem se fala. Eu não reparo tanto em ornamentação, mas minha mãe

que adora coisas burguesas, falou que estava tudo muito lindo. O buffet serviu frutos do mar no jantar.

Nunca tinha comido camarões tão grandes. Desconfio muito que aqueles tinham recebido os mesmos hormônios e antibióticos que frangos e vacas recebem. Tinha uma mesa de rosca, também comum em festas, um fotógrafo, que revelava instantaneamente as fotos de recordação, um DJ, o qual tocava as músicas de sucesso dos meses anteriores. As mulheres que desejassem, poderiam trocar o incômodo do salto alto pelo conforto de uma sandália havaiana personalizada. Também era oferecido um copo personalizado, com o qual se poderia tomar o whisky jogado pelo noivo, na sua versão do “jogar o buquê” da noiva. Ao final da festa, ganhávamos um doce, o bem-casado. Doce este que foi motivo de um leve desentendimento entre eu e meu namorado.

Todos os itens supracitados eu já havia visto em casamentos anteriores. O que foi absurdamente novo pra mim foi o fato de haver porteiros. Sim, porteiros. Porteiros em todas as portas do salão. Na porta do salão onde ficavam as mesas de jantar, na porta do salão do buffet e da pista de dança, na porta lateral, que dava para o corredor da cozinha. Todas as portas tinham porteiros. E ninguém achou aquilo um absurdo. Os porteiros, em sua totalidade homens negros, eram obrigados a ficarem em pé durante toda a duração da festa, para que os convidados, elegantes, bem arrumados, não tivessem o desprazer de forçar a palma de sua mão contra uma maçaneta suja, que outros haviam tocado antes, ou pior, ao forçar a palma da mão na maçaneta para vencer o torque de uma porta de vidro, o convidados poderiam modificar sua expressão facial de felicidade para alguma outra de menor beleza. Mas isso seria terrível e inadmissível. É melhor colocar outros seres humanos para fazerem tarefas repetitivas e sem propósito aprofundado, como fazem nossos eletrodomésticos. Este cenário lembrou-me de uma pintura de Debret que descreve bastante o quanto ainda guardamos esse ranço escravista silencioso na nossa sociedade brasileira: Retour, a la ville, d’un propriètaire de chacra (Debret, Paris: Firmin Didot Frères, 1835).

Não consigo estimar a quantidade de dinheiro gasta naquela noite. Tanto por parte dos noivos, quanto pelos convidados. Catarina, minha afilhada que trabalha com eventos, afirma que só as flores para casamentos desse nível de luxuosidade custam 150.000 reais. Imagina então o valor do aluguel da limusine, do cerimonial, do vestido da noiva, do dia da noiva no salão de beleza, do terno do noivo, do buffet contratado para servir frutos do mar com crustáceos do tamanho de cachalotes e abrir portas para convidados, do cachê do DJ, do serviço de iluminação, da máquina de fotos que imprime na hora, da mesa de rosca, da personalização das lembranças, dos convites individualizados feito à mão, do serviço de fotografia com inúmeros fotógrafos, do valet para maior conforto dos convidados, do coreógrafo da “dancinha” dos noivos, enfim, de tantos outros custos que eu nem tenho ideia que eles possam ter tido.

E os convidados, quanto gastaram também para comparecer à festa? Minha mãe mesmo alugou um vestido, bem bonito. Fez as unhas, escovou e pintou o cabelo, pintou até as sobrancelhas através de uma “nova técnica” no salão (que saiu no dia seguinte, provando o quanto eu acho que salão de beleza é uma picaretagem). Fora o presente para os noivos (para a noiva, porque na lista que divulgam só há presentes voltados ao público feminino). Este é um dos principais motivos que me fazem não gostar de casamentos. As pessoas vão casar e é você, convidado, que tem que financiar os utensílios da casa deles. Se você quer casar, TENHA DINHEIRO PARA COMPRAR SUAS COISAS! Além do mais, ainda exigem quais os presentes vão ganhar. Tudo bem, é bom fazer uma lista para que não haja presentes repetidos, pensando na organização da coisa é até válido. O problema é que as pessoas vão às lojas mais caras da cidade e fazem a lista. Nas lojas onde um simples suporte para bolos custa 100 reais. 100 reais. Vocês sabem o que são 100 reais por um prato grande onde cabe uma bomba calórica que fará muito mal à sua saúde física? Ou pior, 100 reais por um dos muitos utensílios que não serão usados? Que só colocaram na lista por vaidade e/ou alienação? É muito absurdo. Sei de casos que a pessoa é capaz de pagar esse valor em um suporte para bolos para um presente de casamento, mas acha que não tem condições de pagar o 13º salário para sua diarista. É muito absurdo mesmo. E se ao ler isso, você pensou “Ah, mas as diaristas não têm direito ao 13º perante a lei da PEC das domésticas”, mostra o quanto sua mente está mergulhada no ranço escravista que eu citei anteriormente. Tenho muita vontade de dar de presente um livro do tipo Manifesto do Partido Comunista em algum casamento que eu seja obrigada a ir futuramente.

Chego em casa após a festa com uma sensação esquisita, porém tenho sentido tanto essa sensação ultimamente que nem é surpresa mais. Sempre que tenho esse sentimento minha mente se cansa mais que meu corpo. Tenho preocupação, pois preciso acordar cedo no domingo para fazer um trabalho da faculdade. Dito e certo! Acordo cansada e atrasada para a reunião com meus colegas. Tão atrasada que decido tomar café na padaria, saindo da minha dieta, mas acabo me atrasando mais ainda, pois a padaria estava cheia. Para piorar, o ônibus demora e eu fico tomando sol no ponto.

Eis que naquele momento a realidade cruel surge diante de mim, me esbofeteia tão forte e abre uma ferida tão profunda que muito provavelmente nunca cicatrizará. Um homem idoso meio cego veio caminhando pela calçada e parou no ponto em que eu estava para pedir esmolas. Ele sacudia uma lata com algumas moedas dentro e pedia: “Gente, me ajuda para eu poder almoçar hoje!”. Contrariando minha filosofia de não dar dinheiro como esmolas, peguei o troco do meu café da manhã e coloquei na latinha dele, sem aquele habitual julgamento sobre como ele iria gastar aquela contribuição. Ao fazer isso percebi que meu transporte se aproximava. Corri para entrar na condução desnecessariamente, pois o sinal de trânsito fechou e o ônibus parou de novo, permitindo que o mendigo idoso entrasse para continuar sua arrecadação.

Ele entrou e logo cumprimentou o cobrador e o motorista. Não sei se eles se conheciam antes ou foi apenas aquele cumprimento soteropolitano comum de pessoas que entram nos ônibus para vender produtos ou mendigar. Não consigo ler as pessoas desse jeito, mas bem que gostaria. Nesse diálogo, o cobrador perguntou:

— Você vai querer comer o que hoje?

E ele responde com uma inocência sutil na voz:

— Ah, se eu pudesse eu iria querer macarrão com um franguinho cozido.

— Você gosta de frango, hein? – pergunta o cobrador, sorrindo.

— Quem não gosta? Se eu pudesse comeria macarrão, frango e “um” alface verdinho. Ah como seria bom! Mas isso é só em sonho…

Algumas outras pessoas contribuíram também. Sua passagem pelo ônibus foi curta, ele logo desceu no ponto do Chácara do Cabula e eu continuei minha viagem até a Lapa pensando na merda de mundo que construímos. Menos de 24 horas antes eu estava em um ambiente onde cada convidado custou 250 reais para o buffet. E sobrou muita comida. E bebida também, tanto que mais tarde naquele mesmo domingo teve outra festa celebrando a festa do dia anterior. Nenhuma daquelas pessoas que estiveram no casamento como convidado já sonhou que seria bom ter “um alface verdinho” para o almoço. Inclusive eu. Aquele idoso, por inúmeros motivos, não podia comprar alimento, enquanto tantas outras pessoas gastavam seu dinheiro com bens materiais supérfluos, em nome da vaidade, da gula. Tanta gente pode se dar ao luxo de gastar cerca de 500.000 reais em um evento de uma noite, sem dor na consciência, enquanto milhares de outras sobrevivem com menos de 10 reais por dia para se alimentar. Difícil perambular entre esses dois mundos.

O que mais me irrita nesse fato é a hipocrisia com que as pessoas enxergam a desigualdade social. Muitas delas, a exemplo do meu cunhado, creem de fato que o mundo é assim mesmo, que a competição existente entre os homens é o normal da natureza. Que alguns serão vitoriosos (leia-se ricos, com acúmulo de capital) e outros serão perdedores, sem acesso aos recursos. Cabe a estes se conformarem com sua situação. Porém existem pessoas que não acreditam nesse discurso ecológico da Escola de Chicago. Pensam que os problemas sociais existentes são causados pelos próprios seres humanos e sua política. Entretanto não agem de acordo com sua opinião. Compactuam com o sistema econômico vigente, quando este lhes convêm, e perpetuam o problema com o qual tanto discordam. Estas são as que me irritam mais. Sinto nojo de conviver com gente assim. Hamlet afirmou que “havia algo de podre no reino da Dinamarca”. Tenho em meus pensamentos que a Dinamarca cresceu em território e abarcou o mundo todo. Há algo de podre em todos os lugares onde o capitalismo alcançou. Durante todo o percurso do ônibus me questionei sobre minha maneira de encarar a ferida aberta pela realidade. Como a inteligência do autoconhecimento é uma das que eu não possuo, não cheguei à conclusão alguma. Não consegui imaginar nenhuma situação no futuro, enquanto eu existir, que seja um passo no caminho rumo à igualdade, compreensão, noção de comunidade, não só com outros seres humanos, mas também com todas as outras formas de vida que habitam nosso planeta-casa. Percebi o quanto precisamos evoluir ainda para que possamos construir uma unidade global justa e igual em oportunidade para todos, mesmo sendo uma tarefa relativamente simples. Este cenário me pareceu desolador e angustiante, diminuindo ainda mais minha pouca motivação para levantar todos os dias e viver. Ainda busco uma esperança. Espero não encontrá-la tarde demais.

 

 

 

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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