‘O debate sobre ações afirmativas no audiovisual é inevitável’

Logo em seus primeiros meses de existência, o Coletivo Damballa, focado no cinema negro, já está dando o que falar. Repercutiu no meio cultural a carta de repúdio lançada pelo grupo e outras organizações questionando uma situação ocorrida numa banca de seleção na área audiovisual para os editais estaduais do Funcultura.

Do Seculo Diário

O próximo passo, que na verdade corresponde ao evento de lançamento público do coletivo, é a realização do encontro “Ações Afirmativas no Audiovisual Capixaba”, que acontece quarta-feira (28), às 19h no Museu Capixaba do Negro “Verônica da Pas”, o Mucane, no Centro de Vitória.

Foto: Vitor Taveira

A programação incluirá a exibição de quatro curta-metragens produzidos por cineastas negros e negras capixabas, seguida de um bate-papo de apresentação do coletivo, articulação com pessoas e grupos presentes e o início de um debate sobre ações afirmativas.

O evento surge com respaldo dos dados divulgados recentemente pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), que explicitam a desigualdade racial no cinema brasileiro, em que a grande maioria de atores, produtores, diretores, roteiristas e outros profissionais são brancos.

Para saber mais do contexto que cerca essa discussão, conversamos com Adriano Monteiro, Mestre em Comunicação e estudioso do cinema negro, que é um dos fundadores do Damballa:

– Adriano, falando em cinema negro, algo super atual é o sucesso do filme Pantera Negra, que fomenta todo um debate sobre representatividade…

Como disse o Will Smith, é um filme que muda o paradigma de Hollywood. Muitos consideram um dos melhores vilões da Marvel. Você vê que é personagem complexo, que traz uma discussão social e racial para a comunidade negra, uma discussão profunda, que envolve tecnologia, com elenco majoritariamente negro. Causou um estranhamento, tanto que houve campanhas de boicote nos Estados Unidos.

O que foi construído e ainda está vigente é um discurso hegemônico do negro como subrepresentação. Nos filmes, o negro não costuma ser referência de estética, de beleza, de moral e padrão cívico, tanto que as religiões de matriz africanas ainda sofrem constrangimentos devido à moral cristã. Há todo um arcabouço teórico, filosófico, imagético que obras como essa e muitas outras estão trazendo, levantando questionamentos.

Nos Estados Unidos foram promovidas políticas de cotas desde os anos 40 para atores e atrizes negros. Ainda assim, em 2015 e 2016, por exemplo, houve críticas e uma campanha chamada #OscarsSoWhite, apontando que não havia candidatos negros nem latinos indicados nas principais categorias do Oscar. A partir daí a academia realizou mudanças que ampliaram e diversificaram os votantes. Em 2017, o grande vencedor foi Moonlight, que tem personagem negro como central.

A representação nas telas vêm crescendo, também no Brasil, que é o que eu pesquiso, mas um grande debate dos últimos ano é justamente aquela sobre representatividade por trás das telas, de quem produz os filmes. Se você pegar os dados da Ancine, vai ver que 75% dos diretores são homens brancos..

– Esse processo de crescimento e questionamento que você diz tem a ver com as mudanças sociais do país?

Com certeza, esse crescimento se dá nos últimos anos, acompanhando a transformação que vêm ocorrendo no país. Não tem como desconectar desse processo da galera se reconhecer cada vez mais enquanto sujeito negro, isso tem forçado essas demandas. Porque se a gente não se vê representado na novela, filme, quadrinhos, literatura, ao mesmo tempo que faz pressão para ser incluído também começa a produzir, mesmo sem recursos, produzindo enquanto negro, com narrativa e história que trazem nossa ancestralidade, nosso ponto de vista.

Por isso, o grande debate agora está na representatividade por trás das câmeras, que são esses profissionais negros que vêm ganhando espaço muito recentemente no Brasil, de três a cinco anos pra cá, como herança das políticas de acesso à universidade. Não tem como descolar isso. Colocou-se mais negros profissionais no mercado e aí vem a tensão, era inevitável. Assim chegamos ao debate de ações afirmativas no setor audiovisual, acompanhando todo o processo que se iniciou ainda nos anos 90, com a discussão da inclusão dos negros nas universidades. Agora existem esses profissionais, mas eles não têm acesso ao fomento, sendo que quem banca o cinema no Brasil hoje em grande parte é o Estado.

É importante quem produz porque há todo um processo de subjetividade negra por trás das histórias que vão ser contadas. Podemos ter personagens negros na trama mas que continuem sendo estereotipados, personagens que ficam na subtrama, na margem da trama, nunca sendo o protagonista, não tendo esse personagem pós-dimensional, como chamam, que traz toda uma complexidade, não apenas figura nas cenas.

– Aí entramos naquele debate de se vale a tal ‘meritocracia’ ou se esse discurso é uma farsa. Observando os produtores no Brasil, sabemos que a maioria é branca e vem de classes médias e altas.

São de classe média alta mesmo. É interessante porque se comparamos com a literatura, tendo em conta que o processo de produção literária tem custo mais baixo, vemos hoje muitos escritores negros aparecendo. Mas o cinema demanda toda uma estrutura, muita grana. É uma indústria em que os equipamentos são caros, a produção é cara. Então, essa classe média alta pede recursos para o Estado, se não é via prêmio de edital público, é por incentivo fiscal de empresa, ou seja, renúncia do Estado. Então se o Estado entra na história, temos que ir para o debate sobre repartir o que tem. Esse debate é inevitável. Já temos alguns lugares avançando nesse sentido.

– Você teria algum exemplo?

Sim. É muito interessante que a proposta de edital do ano passado da SP Cine, que é uma autarquia do município de São Paulo, já veio com ações afirmativas não só para negros, mas também com percentual para mulheres, deficientes, transsexuais, um leque amplo de acesso aos recursos. Tenho informação de que na Bahia o debate têm avançado também. Em Pernambuco estão utilizando outro tipo de incentivo, em que se o proponente for negro ou mulher, ganha uma pontuação extra.

– E no Espírito Santo, esse debate não tem sido feito?

Até o momento não. A gente se propõe como coletivo a ser realizadores, queremos produzir, mas também estamos trazendo esse debate político dentro do setor. No estado a gente não tem uma pesquisa ainda que nos dê dados sobre o negro no audiovisual. Parece que há uma uma pesquisa sendo realizada e queremos também analisar os dados que temos dos editais da Secult ]Secretaria de Estado da Cultura].

Mas como conhecedores do meio, já vemos que a grande maioria dos produtores é dessa classe média branca. Mesmo com uma galera nova chegando, formando na Ufes [Universidade Federal do Estado], isso continua se reproduzindo. Os produtores brancos vão ganhando mais espaço, enquanto a galera preta continua produzindo no modo independente, em projetos sociais, poucos realizadores negros conseguem ter acesso aos editais da Secult.

Claro que a discussão sobre a avaliação passa por uma série de coisas, desde a composição da banca até um projeto bem escrito. Mas quem estuda e pesquisa sobre racismo e relações raciais sabe que esses assuntos atravessam os caras. Então privilegiar alguém da sua classe é muito fácil, acontece e é rotineiro. Nisso, temos que reconhecer um avanço, pois os editais têm incluído julgadores negros e mulheres. É um passo inicial, mas precisamos acompanhar a conjuntura nacional, ampliar o debate.

– Muitas vezes ficamos assistindo ou esperando acontecer nos outros lugares primeiro, foi assim na adoção do sistema de cotas da Ufes…

O setor audiovisual no Espírito Santo tem uma série de questões problemáticas, que precisam avançar. Mas democratizar esse recurso acho que é um caminho sem volta. Vai ficar feio, porque outros estados estão começando a adentrar e aderir a essa discussão, principalmente a partir dos dados divulgados pela Ancine, reconhecendo essa desigualdade e, de certa forma, exclusão que acontece no setor. É assustador ver que em 2016 não tem nenhum diretor negro de um longa-metragem. Isso não pode ser tratado com naturalidade e normalidade.

Há uma série de profissionais. No meu trabalho de pesquisa em cinema negro comecei praticamente conhecendo dois ou três nomes e terminei a pesquisa com levantamento que perdi as contas, de jovens realizadores negros, que estão ainda no campo do curta e na produção estilo guerrilha, por meio de crowdfunding, que tem ganho uma certa visibilidade no campo dos festivais, inclusive fora do Brasil, no Festival de Cannes. Uma geração nova que está produzindo e produzindo muito bem.

E é importante ressaltar que essa produção também está ligada a um rompimento estético. Uma ruptura com a estética euroamericana, com a estrutura hollywoodiana de padrão de filme. A galera está trazendo esses novos corpos e significados para as telas e isso causa estranhamento mesmo.

Como Coletivo Damballa, queremos trabalhar cinema de gênero, realismo fantástico, terror, que é onde não se imagina que a questão racial possa ser problematizada. As produções já estão em processo, vamos fazer no modo guerrilha mesmo, não dá para ficar esperando a Secult adotar ações afirmativas. Vamos produzir e ao mesmo tempo trazer essa discussão política para o Espírito Santo. Não dá mais, é constrangedor a gente não pautar essa questão por aqui. Temos que democratizar o acesso a esses recursos, que são públicos.

SERVIÇO
Encontro ‘Ações Afirmativas no Audiovisual Capixaba’

Dia 28/2 (Quarta-feira), 19 horas
Local: Auditório do Museu Capixaba do Negro “Verônica da Pas” (MUCANE) — Av. República, 121, Centro de Vitória.
PROGRAMAÇÃO
19h: Exibição dos Filmes:
“Hic” – Direção: Alexander Buck
“Beatitude” – Direção: Dell Freire
“Braços Vazios” – Direção: Daiana Rocha
“Sombras do Tempo” – Direção: Edson Ferreira
20h: Roda de conversa “Ações Afirmativas no Audiovisual Capixaba”

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