O feio conflito interno do feminismo: porque o seu futuro não depende das mulheres brancas

De Beyoncé a Internet, passando por diferentes prioridades políticas, os feminismos branco e negro não são iguais. Aqui está a razão.

Por: Brittney Cooper no Blogueiras Feministas

Nesta semana, eu recebi o email de um leitor que gostaria de saber como o meu trabalho se pareceria se eu “incluisse uma perspectiva feminista”. Uma vez que o feminismo negro inspira e molda toda minha política, eu ri. Depois, li o excelente debate entre Rebecca Traister e Judith Shulevitz sobre o futuro do feminismo nas páginas da revista New Republic. Eu sempre acho o trabalho de Traister perspicaz, admirável e empenhado em desafiar a perpetuação da brancura no feminismo.

Mas aqui está a questão: o futuro do feminismo não depende das mulheres brancas. Não por elas mesmas, de qualquer maneira.

Traister reconheceu isso sem rodeios, escrevendo: “as duas pessoas que estão nesta conversa são brancas, educadas, mulheres de classe média que vivem em Nova York”.

Três semanas atrás, eu estava sentada no porão de uma igreja em Ferguson, Missouri, conversando com jovens locais sobre como construir um movimento de justiça racial que seja gênero-inclusivo para combater a brutalidade policial. Meu bordão para eles era que “a nossa geração deve aprender as lições dos anos 60”. E, apesar deste momento político — a guerra contra as comunidades negras, a repressão policial aos homens negros, a guerra sobre os direitos reprodutivos das mulheres — realmente parecer com os anos 60, este é o remix. E nós temos a vantagem e a retrospectiva da história para nos guiar ao mundo que nós estamos lutando. Enquanto ouvia as jovens mulheres me dizerem como elas haviam sido vítimas de assédio sexual e tratadas com escárnio pelos jovens homens de Ferguson, eu gentilmente ofereci conclusões que recolhi da leitura de mulheres negras como Barbara Smith, Toni Cade Bambara e Pauli Murray — pioneiras feministas negras — falando sobre como se organizar na década de 60. Várias das jovens mulheres vieram até mim e disseram: “essas coisas foram acontecendo conosco e nós não tínhamos a linguagem para lidar com isso”.

O feminismo nos dá a linguagem para nomear a experiência. Ter a linguagem me ajudou a entender que o sexismo importa, da mesma maneira que o racismo é extremamente importante. Em um momento político em que nós estamos gastando nossa energia política lutando por justiça para Michael Brown e John Crawford, enquanto os homens negros falham ao não juntar-se e se indignarem contra a cultura sustentada por Ray Rice para violentar sua esposa, essa linguagem é reconhecidamente importante. Quando Daniele Watts é assediada pela polícia de Los Angeles, e o líder local da NAACP – National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas Negras) a convida para se desculpar, ou quando duas adolescentes negras são mortas na Flórida e quase ninguém está falando sobre isso, ter uma política que mescla o sexismo e o racismo me parece uma necessidade inequívoca.

Rebecca Traister estabelece uma série de imperativos políticos que eu concordo cem por cento: pagamento do auxílio-doença pelo estado, creches subsidiadas pelo estado, proteção ao salário igualitário, revogação da Emenda Hyde, aprovação da ERA – Equal Rights Amendment (Emenda dos Direitos Iguais) e a eleição de uma mulher feminista como presidente. Eu sei que todas e cada uma dessas propostas políticas vai em algum nível melhorar a vida das mulheres não-brancas, e em particular das mulheres negras e latinas, que são desproporcionalmente pobres e desproporcionalmente beneficiárias de auxílios públicos.

Mas é a descrença e a ansiedade (além da miopia) que emoldura as primeiras respostas de Shulevitz que me dá vontade de parar. Sua primeira resposta afirma que “o discurso feminista da internet não faz muito por mim”. E ela também cita o infame texto de Michelle Goldberg: ‘Feminism’s Toxic Twitter Wars (As Guerras Tóxicas do Feminismo no Twitter); (em que eu sou citada) como um exemplo de porquê o feminismo da internet não tem nada a dizer que ela ache interessante.

Nunca ocorre a Shulevitz que o feminismo da Internet não é, no fim das contas, para e sobre ela ou sobre suas necessidades em qualquer sentido específico. Além disso, sua tentativa velha e sem originalidade de apresentar Beyoncé como uma feminista falaciosa é uma argumentação ruim. Ainda que eu apoie totalmente o feminismo de Beyoncé, como eu já disse em vários espaços, o que me interessa é a maneira pela qual as mulheres não-brancas, e em particular as mulheres negras, flutuam em segundo plano nas respostas de Shulevitz, evidenciando sua aflição em relação ao feminismo impulsionado por Beyoncé e pela Internet.

Como o texto de Michelle Goldberg mostrou, o feminismo da Internet é um espaço onde as mulheres jovens não-brancas, as mulheres negras em particular, detêm uma expressiva quantidade de poder e influência. Isso faz com que muitas, muitas mulheres brancas sintam-se profundamente desconfortáveis. Shulevitz, ao que parece, é uma delas. Assim, Shulevitz faz reivindicações claramente problemáticas que parecem reflexões pessoais, mas não são, em última instância. Ela escreve:

Será que a exclusão da maior parte dos cuidadores e de outros trabalhadores que estão na extremidade mais baixa da escala salarial por uma política de auxílio-doença seria grotesco, injusto? Absolutamente. Devemos propor uma legislação para conseguir isso? Absolutamente. Nós podemos construir a partir daí.

Essas são os tipos de declarações que as mulheres brancas da classe média podem definitivamente fazer sem nunca pensar duas vezes. Porém, eu venho de uma comunidade onde muitas mulheres negras, incluindo membros da minha família, eventualmente acabam trabalhando como cuidadoras exatamente porque as oportunidades de emprego são limitadas. São trabalhadoras que estão mais vulneráveis ao sistema e, na maioria das vezes, precisam do auxílio-doença por causa do tipo de trabalho árduo que envolve levantar, lavar, deslocar e cuidar de outra pessoa.

Quando leio o que sai como um tipo de presunção autoconfiante, eu penso comigo mesma: “O futuro do feminismo não pode ser deixado nas mãos das mulheres brancas”. E, enquanto eu espero que mais feministas brancas busquem expandir o conhecimento que tem sobre as mulheres negras, tanto historicamente como no presente, da mesma maneira que Rebecca Traister tem um grande cuidado ao apresentar suas respostas, o privilégio branco permite que a maioria das mulheres brancas não tenha que fazer esse tipo de trabalho, não tenham que cultivar esse tipo de empatia para com as mulheres que não são brancas.

Mas há também a questão do quanto diferente seria uma uma ampla agenda política do feminismo negro. Tendo passado vários dias assistindo a polícia de Ferguson usar armas militares contra os manifestantes, em grande parte pacíficos, muitos deles jovens mulheres negras, particularmente aquelas que comandam o feminismo online não acreditam na capacidade do governo federal de amenizar os desafios enfrentados pelas comunidades negras.

Nosso feminismo busca um fim para a repressão policial nas comunidades minoritárias, o acesso à escola pública de qualidade em que não expulsem nossas crianças por infrações menores e o fim do complexo industrial da prisão, que encarcera muitos de nossos homens e mulheres, fraturando famílias e criando novos encargos econômicos quando nossos entes queridos são liberados. Precisamos de atenção integral à saúde e acesso a clínicas de aborto, mas também precisamos de um sistema de saúde mental, robusto, que possa enfrentar longos séculos de traumas racista, sexista, sexual e emocional. Precisamos de igualdade salarial, sim. Mas também precisamos de bons empregos, em vez de sermos relegadas a um ciclo interminável de trabalhos com baixa remuneração.

Os feminismos das mulheres brancas ainda giram em torno da igualdade, um ponto sobre o qual Traister e Shulevitz convergem. Os feminismos das mulheres negras exigem justiça. Há uma diferença. Um tipo de feminismo enfoca as políticas que ajudarão as mulheres a se integrarem plenamente no sistema norte-americano já existente. O outro reconhece as falhas fundamentais do sistema e busca a sua transformação completa e total.

Reconheço, do mesmo modo, que a marca do feminismo de Beyoncé também é a igualdade, ao invés de justiça. É por isso que mesmo eu sendo uma grande fã, ela não é meu ícone ou modelo feminista. Na verdade, ela poderia assistir alguns dos meus cursos introdutórios sobre estudos de gênero. Porém, o feminismo de Beyoncé, como todos os nossos, está evoluindo, oferecendo-lhe uma linguagem para entender o que significa ser uma mulher negra neste momento da história com o nível de poder, o capital e o apelo sexual que ela possui. O fato dela ao mesmo tempo abraçar e agarrar a linguagem do feminismo tão abertamente é algo que merece aplausos. E o que eu aprendo com ela e aprecio é que ela fornece uma gramática para o prazer feminino negro sem remorsos, num mundo que só ama a ação, o entusiasmo e a corporalidade das mulheres negras quando mulheres brancas como Iggy Azalea, Katy Perry, Taylor Swift e Miley Cyrus adotam e apresentam isso.

Para as feministas ou “defensoras do cuidado” como Shulevitz chama a si mesma, esse tipo de conversa é assustador e fora de propósito. Também é “inapropriado” para sua jovem filha, como ela disse no programa de Melissa Harris-Perry. Desenvolver publicamente a ideia de que a exposição da sexualidade feminina negra é um perigo para as crianças brancas não pode nos levar a uma política justa, feminista e racialmente inclusiva.

Então, o cuidado que precisamos ter por parte do feminismo é simplesmente não se comprometer primeiramente com a classe média branca, representada como as mães norte-americanas e suas crianças, mas dar preferência e se comprometer com as pessoas não-brancas, que não fazem parte da classe média, que não são heteronormativas, que não são cisgêneras, que não são mulheres norte-americanas e suas crianças. O femininismo negro me ensinou isso.

Para mim, isso significa que na prática eu me importo com o que acontece na política americana, porque os cortes no auxílio-alimentação, a redução de fundos para as escolas públicas e a falta de acesso a todos os benefícios do programa Obamacare em certos estados afetam as mulheres negras que eu amo. Isso significa que eu me importo que o Departamento de Justiça investigue Darren Wilson. Isso significa que eu me importo com o fato do presidente não utilizar seu único programa de justiça racial para falar sobre as questões sociais dos jovens meninos não-brancos. Mas isso também significa que quando eu olhar para uma visão de mundo que eu quero ver, eu enxergue as mulheres jovens não-brancas, que mesclam raça, gênero e políticas queer em uma visão ampla, inclusiva e justa do mundo. Este é um mundo onde a vida de todos está ficando melhor, inclusive das mulheres brancas.

 

 

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