O futuro é uma mulher preta¹

“Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”

As mulheres negras são o maior grupo social do Brasil de hoje, com aproximadamente 41 milhões de pessoas. Antes da pandemia, cerca de metade estava fora do mercado de trabalho. E quem estava dentro, trabalhava sobretudo no mercado informal, recebendo até dois salários-mínimos. Apenas 5 milhões possuíam ensino superior, recebendo menos do que os demais grupos sociais com a mesma qualificação. Hoje, o quadro está agravado. Mulheres negras têm sofrido toda sorte de privações, premidas pelo desemprego, pela fome, pela violência doméstica, pela carga de trabalho excessiva, entre outras questões. O que é preciso para mudar esse estado de coisas? No presente texto, aponto um conjunto de mudanças possíveis que podem acolher as vulnerabilidades, ao mesmo tempo em que dão suporte às potências das mulheres negras, baseada em diálogo com Lúcia Xavier e Vilma Reis³, sobre que Estado pode estar à serviço dessa coletividade.

  1. É preciso colocar a pirâmide social de cabeça para baixo, assumindo as mulheres negras como o centro da política pública.

As vulnerabilidades das mulheres negras permanecem no centro da questão social brasileira, porque sua superexploração garante a criação da riqueza e manutenção do bem-estar de variados segmentos sociais. Permitem que sua família esteja à serviço da superexploração da força de trabalho dos empreendimentos econômicos, em geral, e da reprodução das classes médias, em particular. “As mulheres negras enriquecem o país, ao mesmo tempo em que não usufruem de suas riquezas”. Os indicadores sociais produzidos antes e durante a pandemia, revelam a intensidade dessa situação e o quanto elas são afetadas pelas políticas de “deixar morrer” e de “deixar viver na indignidade”. Não por acaso, 80% da mortalidade materna no mundo provocada por Covid-19 tem nacionalidade brasileira, agravando a sobremortalidade já escandalosa de mulheres negras; e cerca de 60% da população hoje vive em situação de insegurança alimentar, sendo que os maiores índices se encontram entre beneficiários do Programa Bolsa Família e em domicílios com crianças até 4 anos. Em outros termos, na casa de mães negras.

Ou a garantia desses direitos básicos é efetivada, ou as mulheres negras continuarão vivendo sob condições de “asfixia social”, penalizando a si mesmas e as coletividades que delas dependem. Nesse sentido, é preciso encarar que, ignorando-as, perderemos talentos, capacidades e potencialidades variadas. 

Em outra direção, ao colocarmos as mulheres negras no centro das prioridades do desenvolvimento, daremos um lugar específico para a redistribuição do excedente social que tem tudo para reforçar as melhorias das condições de vida de todas as pessoas, admitindo-se que “quando um serviço público for excelente para a mulher negra, significa que ele é bom para qualquer cidadão brasileiro”. Ou, um sentido concreto para a frase de Angela Davis, que afirma que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

Ao fim e ao cabo, trata-se de inverter os significados da intervenção pública hoje existentes, que frequentemente assumem que ao investir nas pessoas mais pobres, estamos construindo fábricas de indolentes. Ao adotar essa perspectiva aqui proposta, tiramos de cena a possibilidade que o elo mais fraco de nossa sociedade, a mulher negra, seja o “recorte” marginalizado que toda política social e de direitos humanos anuncia, mas nunca consegue alcançar integralmente.

  1. É imperativo ouvir as mulheres negras não apenas como beneficiárias de políticas públicas, mas como formuladoras.

As mulheres negras são frequentemente entendidas como público vulnerável, mas não como portadoras de novas ideias para implementação de políticas públicas. Em outros termos, são mais entendidas como objetos, destinatárias de favores e ações caritativas do que como sujeitos de direitos.

Ora, esse represamento impede que quadros seculares de exclusão sejam revertidos. Assim, por exemplo, Centros de Assistência Social funcionam em horários em que a maioria das mulheres negras está trabalhando e não podem faltar ao serviço. O Programa Nacional de Alimentação Escolar segue sem acolher o trabalho de pescadores artesanais e marisqueiras, desperdiçando o poder de compra estatal para o fortalecimento de negócios negros. O Programa Bolsa Família acumula filas de espera, ao invés de ser prontamente concedido a quem precisa. Os equipamentos públicos seguem concentrados nos centros da cidade, favorecendo a fruição desigual dos serviços públicos, entre outros inúmeros exemplos.

Sem escutar empaticamente as necessidades das mulheres negras, corremos o risco de continuar fazendo escolhas alocativas equivocadas, sufocando sonhos de gerações. 

  1. O Estado brasileiro deve reconhecer sua responsabilidade no enfrentamento ao racismo.

Quando reclamam sobre suas condições de vida como maior grupo social brasileiro, as mulheres negras não estão pedindo favores a sujeitos indeterminados. Estão reivindicando sua plena participação na vida democrática, a fruição de direitos políticos, econômicos e sociais ao Estado e à toda a sociedade – aspectos esses que são cerceados pelos amplos benefícios que pessoas brancas herdaram da escravização colonial e ainda os amplificam. 

O que está em jogo para as mulheres negras é a afirmação de um projeto de justiça social que tensiona o conflito distributivo e indaga a continuidade do racismo estrutural, na medida em que questiona se o Estado brasileiro seguirá ignorando a maioria de suas cidadãs. Ou assume-se que os instrumentos públicos devem se aperfeiçoar para acolher a participação de mulheres negras nos processos decisórios estatais e operar visando a garantia de seus direitos, ou república e democracia continuarão sendo palavras opacas, sem sentido prático para milhões de pessoas. 

Por fim

Não precisamos reproduzir os caminhos sociais que nos trouxeram até aqui. A pulsão de vida que brota das mulheres negras pode renovar e ampliar a democratização do Estado brasileiro. Reconhecer sua contribuição para a construção do país e garantir o pleno exercício de seus direitos tem o potencial de transformá-lo em um lugar melhor para todas as pessoas. Enquanto as mulheres negras – grávidas de sonhos e aspirações, de futuros justos, de meninos e meninas em seus ventres – continuarem sendo violentadas e arrancadas de nós ao invés de se tornarem o centro das políticas públicas, seguiremos como uma democracia incompleta.


¹ Frase pintada na Alameda Lorena, em São Paulo-SP, pelo Coletivo Nós Artivistas em 27/11/2020

³ No evento “Mulheres Negras Periféricas: desafios e caminhos para o desenvolvimento sustentável e inclusivo” realizado em dia 01/, disponível em https://cutt.ly/NnuXIzE 

² United Nations Human Rights Fellow of African Descent, Mestre em Desenvolvimento Econômico, com concentração em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), Especialista em Planejamento e Orçamento (Enap), Bacharel em Administração (UFBA).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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