O caso de Gisèle Pélicot, a francesa conhecida no mundo inteiro por ter sido drogada e oferecida pelo marido, Dominique Pélicot, a mais de noventa homens ao longo de dez anos, para ser violentada, demonstra a dinâmica do Patriarcado e como os homens agem. Ela teria direito a um julgamento fechado, a esconder o rosto e até mesmo mudar de nome, mas preferiu a exposição do caso para confrontar a sociedade. Os vídeos dos abusos também foram autorizados a serem assistidos pela imprensa. Desde que o caso veio à tona, daqui da França, sigo os depoimentos dos acusados e os detalhes mais sórdidos que parecem piorar a cada audiência. No Patriarcado, o fundo do poço não tem fim.
No computador de Dominique Pélicot foram encontradas fotos nuas também da filha, que escreveu um livro intitulado: “E eu parei de te chamar papai” (Et J’ai cessé de t’appeler papa), além de fotos das noras. O acusado, no bando dos réus, jura não ter tirado as fotos, tampouco abusado da própria filha, mas a pasta com os arquivos foi nomeada: “Fotos da minha filha nua”. Quando interrogado sobre as razões pelas quais não tirou dos filhos homens, ele disse que homens nunca lhe atraíram, entrando em contradição sobre a negação de incesto.
Descendo mais ao fundo do inferno da dominação masculina, alguns depoimentos chamaram-me a atenção. Um dos violadores, identificado nos vídeos pela polícia, diz ter sido iniciado pelo próprio marido da vítima a fazer o mesmo com a sua esposa. E, ele fê-lo. Drogava-a e a oferecia no mercado pornô e clandestino (nem tanto) das redes sociais. Dominique, seu mestre, viajou até a cidade do seu seguidor para violentar a mulher. Porque homens não somente dominam o corpo das mulheres, mas criam redes para melhor fazer.
Dominque Pélicot conta da própria infância, do pai, descrito como homem rígido e agressivo. A certo ponto do julgamento ele diz: “Não nascemos perversos, mas nos tornamos”. Na sua narrativa ele confessa que o genitor abusava sexualmente de uma irmã, adotada pela família e portadora de deficiência mental. Ele sabia do incesto, mas, como um bom homem, jamais denunciou o pai. O irmão de Dominique, ao ser interrogado, confirma que a menina era constantemente violentada, o que dava a entender que todos na casa sabiam, mas ninguém agiu. No entanto, ao contrário do irmão, ele não acredita que o pai tenha influência nos atos perversos do acusado, mas, sim, o vício em pornografia, que, nas suas palavras, o arruinou.
Outro depoimento chamou-me atenção. Um dos violadores, à época do crime com vinte e quatro anos, enquanto a vítima tinha quase sessenta, diz: “Eu odiava as mulheres”. É uma confissão rara de misoginia, feita publicamente. E, ao contar as origens deste ódio contra as mulheres, ele revela que foi enganado e traído por sua primeira namorada, que engravidou cedo e disse ser ele o pai. Depois do casamento, quando o menino tinha três anos, um teste de DNA revelou que ele não era o progenitor. Segundo o homem, o seu mundo desabou e foi então que ele passou a odiar as mulheres. Parece um ótimo álibi, não fosse a continuação do depoimento. Ele conta ter sido abusado sexualmente por outro homem quando tinha oito anos de idade. É neste detalhe que se esconde as artimanhas do Patriarcado. Ele não diz odiar os homens por este estupro que sofreu, mas odeia as mulheres pela traição. O que me faz pensar que ele só precisava de um motivo, socialmente aceito, para dirigir a violência contra as mulheres, recipientes ideais.
Colette Guillaumin, socióloga francesa que deixou um imenso legado nos estudos sobre raça, classe e gênero, diz que as mulheres, enquanto classe, são socializadas para a disponibilidade de todos os membros da família, sobretudo os homens, além da submissão que se manifesta em pequenos gestos: limpar à mesa depois da refeição, deixar aos homens dois terços do banco no transporte público, passar o cinzeiro, o pão, o macarrão, o cigarro, deixar o maior pedaço de carne, abaixar a voz, calar-se quando ele interrompe, etc. Além da socialização nos pequenos gestos, a construção dos corpos e a exigência de padrões, fortalecem a dominação masculina, como, por exemplo, que mulheres sejam mais baixas, mais magras, mais frágeis e que não recorram à força física, coisa esperada dos homens. A “delicadeza” exigida, facilita a submissão. Tudo isso é automático na sociedade patriarcal, não pensamos sobre e, homens incorporam a ideia de que mulheres existem para lhes servir, para usarem-nas como objeto, inclusive, oferecendo a outros. Há os que são excessivamente ciumentos, não compartilhando o seu “produto” com outros, demarcando território e impedindo este “objeto” de ganhar vida própria. São duas faces da mesma moeda.
A violenta socialização dos homens é presente em todas as culturas. Digo, todas. Assim como a transmissão desta violência recebida, que encontra nas mulheres o amortizador mais adequado. Quando homens matam mulheres, a sociedade diz que se trata de um desequilibrado, que perdeu o controle, psicologicamente insano. Mas, este “desequilíbrio” não recai em outros homens. Porque não “enlouquecem” e atacam os pais, os irmãos, os amigos, os patrões?
E, para terminar, trago outros dois depoimentos, de uma dupla que destoa dos outros noventa homens por terem recusado a proposta de Dominique Pélicot de estuprar a esposa. Um deles disse que Dominique lhe ofereceu dinheiro, mas ele recusou ao saber que ela estava desacordada. Outro, ainda, contou que lhe foram oferecidos serviços de jardinagem por parte de Dominique em troca da própria esposa. Este último também recusou dizendo que mulheres não são objetos. Nenhum dos dois foi até a polícia denunciar o Site em que todos eles conversavam, o coco.fr, desativado depois da descoberta dos crimes. O homem, de quarenta e oito anos, disse que o motivo de não ter denunciado foi o receio que a esposa descobrisse o que ele fazia na internet. Entre uma mulher em perigo e a própria imagem de homem de família, não tenhamos dúvidas sobre a escolha dos homens.
O Patriarcado precisa tremer até desabar com a exposição de casos de violências em todas as sociedades, entre todas as raças e classes, como fez onze mulheres da mesma família, abusadas desde crianças, nos anos 80, pelo tio, na Ilha da Reunion, distrito francês que ainda podemos chamar de colônia ou mesmo Charity Jimonhe, jovem nigeriana que denunciou os traficantes de corpos de mulheres para a prostituição na Europa, homens do seu próprio país, apontando também o ódio que o seu pai nutria por ela, apenas por ter nascido menina, os estupros que sofreu a ponto de engravidar, a facada no dia do seu aniversário e o assassinato da mãe. O feminismo é necessidade básica num mundo que nos odeia.
Fabiane Albuquerque é doutora e em sociologia, autora dos livros Cartas a um homem negro que amei (Editora Malê) e Ensaio sobre a raiva (Editora Patuá)
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